Na boca dos vizinhos
Digo que meus poemas nascem do espanto, de algo que põe
diante de mim um mundo sem explicação
Ao chegar à caixa do supermercado, a moça que ali atendia me
falou: "É verdade que o senhor vai parar de escrever poesia? Não faça
isso, poeta, por favor!". Não acreditei no que ouvira. Aquela moça, que
mal conheço e passa o dia a cobrar pelas compras dos fregueses, sabe quem sou
eu e lamenta que eu não vá mais escrever poesia! "Mas quem lhe disse
isso", perguntei, e ela: "Li naquele jornalzinho que o pessoal
distribui de graça".
Só então me lembrei da entrevista que havia dado a um jornal
de bairro e que fora publicada com um título mais ou menos assim: "Gullar
diz que não vai mais escrever poesia".
-- Não foi bem isso que eu disse --expliquei à moça da
caixa. Afirmei foi que talvez não venha mais a escrever poesia. Não disse que
decidi não escrever mais.
Peguei minhas compras e me dirigi para casa, um tanto
surpreso com aquela conversa. A moça não apenas deu importância ao que saíra no
jornal, como lamentara minha suposta decisão. Jamais pensara que minha poesia
interessasse a uma caixa de supermercado. Na minha visão equivocada, às pessoas
do povo o que importa são as novelas de televisão. Daí o meu espanto.
Mas o espanto não parou aí. Dias depois, ao atravessar a
rua, uma senhora me interpela e me diz que seu filho de dez anos ficara muito
triste ao saber que eu ia parar de escrever poesia. "Ele sabe seus poemas
de cor." Expliquei-lhe que não foi aquilo o que disse ao repórter.
"Diga a seu menino que a poesia sopra onde e quando quer, ninguém manda
nisso."
E segui meu caminho, feliz de saber que um garoto de dez
anos ama meus poemas. Só me resta agora pedir às Musas que me ajudem e não me
deixem parar de fazer poemas.
De qualquer modo, vendo que a notícia se alastrara e que,
para minha surpresa, há quem deseje que eu continue a escrever poesia, sinto-me
na obrigação de esclarecer o assunto. A coisa é a seguinte: escrever ou não
escrever poesia não é coisa que se decida. Logo, não foi o que eu declarei
àquela repórter do jornal de bairro.
Na verdade, sempre que termino de escrever um livro de
poemas, tenho a impressão de que não vou escrever mais, de que a fonte secou. A
primeira vez que isso aconteceu foi com "A Luta Corporal", cujos
últimos poemas datam do começo de 1953.
Ao escrever o poema "Roçzeiral", em que
desintegrava a linguagem, achei que não iria escrever mais. Naquela vez, pelo
menos havia uma razão efetiva, já que, ao desintegrar o discurso poético,
tornava inviável seguir escrevendo. Mas a coisa se repetiu, anos depois, quando
publiquei "Barulhos", quando publiquei "Muitas Vozes" e,
recentemente, ao dar por concluído "Em Alguma Parte Alguma".
Creio que isso se deve ao fato de que não planejo nada,
muito menos meus livros de poemas. De repente, descubro um tema novo, um veio
que passo a explorar até esgotá-lo. Isso demora anos, porque, também, ao
concluir cada poema, tenho a impressão de que o veio se esgotou.
Sim, pois do contrário, não daria por findo o poema. Mas
chega um momento em que o veio se esgota mesmo, percebo que não há mais nada a
retirar dali. Dou o livro por concluído e aí vem a sensação de que não
escreverei mais. Sim, porque se não descobrir outro veio, não terei o que
escrever. E enquanto não o descubro, essa sensação se mantém até que, de
repente, um belo dia, a poesia volta a me iluminar.
Os fatos têm mostrado que acabo por descobrir um veio novo e
volto a escrever. Pelo menos foi o que aconteceu até então. Sucede que o último
poema do meu último livro "Em Alguma Parte Alguma" data de novembro
de 2009, e até hoje, três anos e sete meses depois, não voltei a fazer nenhum
poema.
Nunca fiquei tanto tempo sem escrever poesia. E não me sinto
motivado a escrever. Sempre digo que meus poemas nascem do espanto, ou seja, de
algo que põe diante de mim um mundo sem explicação. É essa perplexidade que me
faz escrever. Pode ser que, aos 82 anos de idade, já nada mais me espante na
vida.
Mal escrevo essas palavras e chega Maria, empregada minha há
mais de 20 anos, que nunca leu um poema meu e nunca tocou nesse assunto durante
todos esses anos, e me diz:
-- Seu Gullar, é verdade que o senhor resolveu não escrever
mais poesia? É o que o pessoal anda dizendo por aí.
Não devemos nos definir poetas, no máximo escritores.
A poesia parece estar a serviço de nós, não o contrário.
Não fazemos poesia quando queremos, mas quando, iluminados, ela acontece.
Cecília