Tuesday, October 08, 2013

João Pereira Coutinho se supera


Homens de bem

 

 

Você, leitor, é pessoa honesta e cumpridora. Trabalha. Paga as contas. É decente com a mulher e os filhos. Mas quando olha em volta, o cenário é selvagem. Os colegas usam e abusam da dissimulação e da mentira. Sem falar da corrupção de superiores hierárquicos ou de políticos nacionais, esse câncer que permite a muitos deles terem o carro, a casa, as férias, a vida que você nunca terá.

Para piorar as coisas, eles jamais serão punidos por suas viciosas condutas. A pergunta é inevitável: será que eu devo ser virtuoso? Será que eu devo educar os meus filhos para serem virtuosos?

Essas perguntas foram formuladas por Gustavo Ioschpe em excelente texto para a "Veja". De que vale uma vida ética se isso pode representar, digamos, uma "desvantagem competitiva"?

Boa pergunta. Clássica pergunta. Os gregos, que Ioschpe cita (e, de certa forma, rejeita), diziam que a prossecução do bem é condição necessária para uma vida feliz. Mas o que dizer de todas as criaturas que, praticando o mal, o fizeram de cabeça limpa por terem falsificado a sua própria consciência?

Apesar de tudo, Gustavo Ioschpe tenciona educar os filhos virtuosamente. Não por motivos religiosos, muito menos por temer as leis da sociedade. Mas porque assim dita a sua consciência. Um dia, quem sabe, talvez o Brasil acabe premiando essas virtudes.

A resposta é boa por seu otimismo melancólico. Mas, com a devida vênia ao autor, gostaria de deixar dois conselhos para acalmar tantas angústias éticas.
O primeiro conselho é para ele não jogar completamente fora as leis da sociedade na definição de boas condutas. Porque quando falamos de vidas éticas, falamos de duas dimensões distintas: uma dimensão pública, outra privada.

E, em termos públicos, acreditar que os homens podem ser anjos (para usar a célebre formulação do "Federalista") é o primeiro passo para uma sociedade de anarquia e violência.

Na esfera pública, eu gostaria que os homens fossem anjos; mas, conhecendo bem a espécie, talvez o mínimo a exigir é que eles sejam punidos quando se revelam diabos.

Se preferirmos, não são os homens públicos que têm de ser virtuosos; são as leis que devem ser implacáveis quando os homens públicos são viciosos.

Isso significa que a principal exigência ética na esfera pública não deve ser dirigida ao caráter dos homens --mas, antes, ao caráter das leis e à eficácia com que elas são aplicadas. No limite, é indiferente saber se os homens públicos são exemplos de retidão. O que importa saber é se a República o é.

Eis a primeira resposta para a pergunta fundamental de Gustavo Ioschpe: devemos educar os nossos filhos para a virtude? Afirmativo. Ninguém deseja para os filhos a punição exemplar das leis. E, como alguém dizia, é do temor das leis que nasce a conduta justa dos homens. Desde que, obviamente, as leis inspirem esse temor.

E em privado? Devemos ser virtuosos quando nem todos seguem a mesma cartilha e até parecem lucrar com isso?

Também aqui, novo conselho: não é boa ideia jogar fora os gregos. Sobretudo Aristóteles, que tinha sobre a matéria uma posição sofisticada e, opinião pessoal, amplamente comprovada.

Fato: não há uma relação imediata entre virtude e felicidade. Mas Aristóteles gostava pouco de resultados imediatos. O que conta na vida não são as vantagens que conseguimos no curto prazo. É, antes, o tipo de caráter que "floresce" (uma palavra cara a Aristóteles) no curso de uma vida.

E, para que esse caráter "floresça", as virtudes são como músculos que praticamos e desenvolvemos até ao ponto em que a "felicidade", na falta de melhor termo, se torna uma segunda natureza.

Caráter é destino, diria Aristóteles. O que permite concluir, inversamente, que a falta de caráter tende a conduzir a um triste destino. Exceções, sempre haverá. Mas, aqui entre nós, confesso que ainda não conheci nenhuma. Não conheço maus-caracteres que tiveram grandes destinos.

Sim, leitor, não é fácil olhar em volta e ver como a mesquinhez alheia triunfa e passa impune. Mas não confunda o transitório com o essencial.

E, sobretudo, nunca subestime a capacidade dos homens sem caráter para arruinarem suas próprias vidas.
 
João Pereira Coutinho

 

Tuesday, August 13, 2013

Luiz Carlos Mendonça de Barros

É o crescimento da renda, estúpido!

Uma economia que fez a renda média da sociedade dobrar em 17 anos não pode estar à beira do abismo

Embora tenha durado apenas o tempo de uma flor de manacá, a exposição do aumento dos índices de IDHM dos municípios do Brasil na mídia precisa ser recuperada. Talvez tenha sido a notícia mais importante do ano para os analistas que procuram olhar o Brasil sob a ótica das mudanças estruturais de nossa sociedade.

Os números são impressionantes e mostram um país que passa de uma posição vergonhosa no campo de desenvolvimento social para a companhia de sociedades mais justas e ricas. Mas essas informações entram em choque com o clima de que estamos próximos de um desastre e que tomou conta de boa parte dos agentes econômicos --empresários e financistas-- nos últimos meses.

Não é possível que uma economia que fez com que a renda média real da sociedade dobrasse em 17 anos esteja à beira do abismo, mesmo que os resultados nos últimos três anos sejam decepcionantes.

Em 1993, a renda média anual do brasileiro era --a valores reais de 2012-- de R$ 5.016,00, equivalentes ao câmbio também de 2012 a US$ 2.500. Em 2010, 17 anos depois, esse número atingiu R$ 10.884,00, ou seja, próximo de US$ 5.500. Um aumento de mais de 100% no período, o que corresponde a uma taxa anual composta de 4,7%.

Mesmo se tomarmos como base a renda média de 1994, início do período do real, os números chamam a nossa atenção. Nesses 16 anos, entre o início do período de estabilidade de nossa moeda e o fim do ciclo de crescimento em 2010, o aumento real da renda média do brasileiro chegou a 64%, ou seja, cresceu a uma taxa anual de 3,14%.

Todo economista sabe --ou deveria saber-- que o fator mais importante por trás das mudanças sociais é o crescimento econômico por um prazo longo. Importa menos a taxa anual de crescimento e mais a duração do período em que esse crescimento se sustenta.

Uma segunda verdade em que acredito é a que nos diz que o principal --e mais difícil-- fator por trás do crescimento econômico sustentado é o aumento da renda real das famílias. Isso é verdade principalmente em uma sociedade de cigarras como a nossa, em que o consumo representa mais de 2/3 do PIB (Produto Interno Bruto).

Por isso, os dados do Pnud da ONU, publicados recentemente, não surpreenderam a equipe de economistas da Quest Investimentos. Afinal, o quadro inicial das apresentações institucionais aos nossos clientes, desde 2007, apresenta um gráfico da renda real calculada pelo IBGE entre 1978 e 2013 e mostra, por meio de uma linha de tendência, seu comportamento nesse período.

Em 1979, último ano do milagre econômico dos militares, a renda real anual era de R$ 7.464,00. Em 1993, fim do período em que tivemos uma hiperinflação histórica, o brasileiro médio ganhava anualmente apenas R$ 5.016,00. Ou seja, uma queda de mais 30% em 14 anos. Podemos contar essa mesma terrível história dizendo que, nesse período negro, o brasileiro empobreceu em média mais de 2% ao ano.

A mais importante consequência desse longo período de crescimento que tivemos depois do Plano Real pode ser vista --a olho nu-- em uma fotografia da sociedade brasileira dividida em classes de renda. Ela também faz parte, desde 2006, das apresentações da Quest como um de seus pontos centrais.

Para chegar a ela, dividimos os brasileiros em apenas duas classes de renda: na primeira estão aqueles que estão inseridos na economia de mercado, ou seja, têm carteira de trabalho assinada, acesso a crédito bancário e no comércio e estão protegidos por programas sociais como aposentadoria, seguro-desemprego e outros que não o Bolsa Família.

Na outra classe, estão os brasileiros que vivem na informalidade e não têm acesso às instituições do mundo formal.

Em 1993, os brasileiros da classe formal representavam um terço da população, ficando o grupo informal com os outros dois terços. Hoje temos a situação oposta, ou seja, dois terços vivem no mundo formal e o outro terço no informal. Uma mudança extraordinária e muito difícil de ser encontrada na história das nações emergentes como a nossa.

Peço agora ao leitor que volte ao título desta coluna.
Luiz Felipe Pondé

A noite escura de Terrence Malick

No cristianismo, amor não é mero afeto, é substância que nos faz existir

"Amor Pleno", novo filme de Terrence Malick, é um exemplo do que o místico espanhol do século 16 San Juan de la Cruz chamou de "noite escura da alma". Não é à toa que o padre (Javier Bardem) tem um discurso muito colado ao do místico espanhol. Ele é o personagem central da narrativa. Como sempre, sem teologia e filosofia, não se entende Terrence Malick.

Por consequência, o filme está próximo do texto bíblico "Cântico dos Cânticos", peça fundamental da literatura mística ocidental, influência marcante no místico espanhol: "Onde Te escondestes que não Te encontro, meu Deus?". No "Cânticos", o amor entre Deus e a humanidade é representado pelo amor entre um homem e uma mulher, suas agonias, prazeres e ausências. "A Noite Escura da Alma" é, como "Cânticos", um texto erótico.

"O amor de Cristo pela sua igreja é como o amor de um homem e uma mulher", diz Bardem. Eis a chave para entendermos o poema místico que é "Amor Pleno". No cristianismo, amor não é mero afeto, mas a ação que nos faz existir. Sem ele, a vida esvazia.

Nesta chave, o amor entre Ben Affleck e "suas" duas mulheres está também "sob" o véu da noite escura da alma, assim como está o amor do padre por Deus e o mundo. Ele é incapaz de amar, elas sofrem por isso.

O filme encerra com a imagem do Mont Saint-Michel, na França, local onde o casal vai no começo de seu amor. Esta abadia é símbolo da vida monástica medieval. Os filósofos vitorinos (Hugo e Ricardo da Abadia de São Vitor, século 12), em sua teoria sobre o amor, entendiam que o amor, posteriormente dito romântico, era da mesma substância do amor de Deus.

Assim como é difícil para nós mantermos o amor por Deus, é difícil sustentarmos o amor entre um homem e uma mulher. Nossa natureza "caída" não suporta o "peso" do amor. Este "peso" assume várias formas, entre elas, o compromisso com ele, principalmente no vazio que o cotidiano instaura em nosso coração e corpo sedentos.

Nossa natureza tende "para baixo", para o tédio e a insatisfação, como diz a mulher francesa no filme quando se refere às duas mulheres que existe nela: uma tende para o amor, para o alto, a outra para baixo, para a terra.

Não é à toa que ela, a francesa, após uma longa conversa com a amiga italiana, niilista e entediada, chega ao adultério, símbolo máximo do tédio e da degradação do amor. Quando nos distanciamos do amor, nos dissipamos num desejo que nos leva ao nada.

Mas, o que vem a ser esta "noite escura da alma"? Quando falamos de mística, pensamos normalmente em êxtase, em "gozo místico". Mas, a "noite escura" é o momento em que a alma, conhecedora de Deus, deixa de senti-lo no seu cotidiano, o que a leva à solidão, ao desespero e à dúvida. Uma verdadeira mística da agonia.

Neste momento, o padre lembra a máxima do Evangelho: "Você deve amar", portanto, o amor não é mero sentimento, mas sim uma ação, como é dito no filme. Agir com amor, mesmo que não sintamos o amor. Para ele, continuar cuidando dos doentes, para o casal, continuar a cuidar um do outro, porque longe do amor, somos todos doentes, umas criaturas da noite que vagam numa escuridão sem fim. No escuro, não é só o outro que desaparece, mas nós também.

O padre chega mesmo a lamentar o fato que, em seu ministério, ele deve "fingir" sentimentos que não tem, assim como um casal deve continuar a amar (esta é a condição do amor como "ação" e não mero sentimento) mesmo quando a paixão desaparece.

Quando nos sentimos longe do amor (de Deus), vemos nosso nada, isso deixa nossa alma inquieta, sedenta. Como é dito em "Árvore da Vida", filme anterior de Malick, a vida sem amor "flashes by", apenas passa. Esta é a chave para passarmos do "Árvore da Vida" ao "Amor Pleno". A responsabilidade dos que "amam menos", como diz o padre, se referindo a ele e a Ben Affleck, é maior, porque são eles que enxergam melhor o vazio no coração da vida.

Os ecos da "noite escura" atingem toda a existência, para além da teologia, adentrando a solidão nossa de cada dia. O drama maior não é não ser amado, mas ser incapaz de amar.

Sunday, August 04, 2013

João Pereira Coutinho

Os falsários

Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas

Memórias falsas. Eis a nova descoberta científica publicada em revista da especialidade. Segundo a "Science", pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology conseguiram implantar memórias falsas no cérebro de ratinhos. Já tinham cometido uma outra proeza no passado: apagar certas memórias. Agora, o desafio foi implantá-las. Conseguiram.

Ainda estamos longe do Santo Graal: apagar más memórias e, se possível, conferir a cada ser humano um passado glorioso. Mas o futuro, tal como o passado, promete. Ou não promete?

Robert Nozick (1938-2002), um dos grandes filósofos do nosso tempo, achava que não. No seu magistral "Anarchy, State, and Utopia", Nozick pedia-nos para imaginar a seguinte situação: existe uma máquina do prazer a que os seres humanos se podem ligar. E, por esse simples processo, ter prazer a vida inteira. Quem daria o primeiro passo?

Poucos. Existe algo de incômodo na ideia de uma felicidade eterna, porém falsa. E esse incômodo tem nome: verdade. Ou, para usar uma palavra cara aos românticos, "autenticidade".

Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas e que a nossa felicidade seja o resultado de experiências, méritos ou virtudes reais.

Se tudo fosse resumido a critérios de prazer e desprazer, ninguém hesitaria em ligar-se à máquina de Nozick. E, no entanto, a maioria hesita.

Não conheço crítica mais devastadora ao utilitarismo nos tempos modernos. Seguindo o cálculo hedônico, o que interessa é proporcionar a maior felicidade ao maior número?

Não necessariamente, afirmava Nozick. Se a felicidade humana não é humana, ela perde qualquer valor para nós.

E o que é válido para a felicidade é válido para a infelicidade. Até porque a segunda é condição para haver a primeira.

Ironicamente, uma máquina de prazer permanente deixaria até de proporcionar prazer. Porque deixaria de haver contraste com as restantes iniquidades da existência: habitaríamos apenas um estado de normalidade entediante em que nada seria importante porque nada seria valorizado em si mesmo.

Sabemos o que é a felicidade porque sabemos o que é a infelicidade. E também porque aprendemos algo com as nossas infelicidades.

"Aprender" é o verbo: implantar memórias falsas já seria uma aberração ética. Mas apagar as más é mais que isso: é uma aberração epistemológica.

Sofremos como cães pelos erros que cometemos. Escolhas profissionais lamentáveis; amores cultivados e frustrados; atitudes egoístas, covardes, impensadas --quem atira a primeira pedra?

Mas sofremos e, com sorte, aprendemos. E existe algo de libertador (e de redentor) quando seguimos em frente e somos capazes de reconhecer os mesmos dilemas, as mesmas tentações, os mesmos traços de caráter --em nós e nos outros. E, claro, as mesmas consequências prováveis de certos atos e omissões.

É então que o passado, e sobretudo o insuportável passado, se torna nosso tutor privado: ao segredar-nos o que devemos evitar e abraçar com conhecimento de causa.

Todos precisamos de más memórias para evitar cometer os mesmos erros. Apagar essas memórias seria uma forma de nos condenarmos a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos. E a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos.

Talvez eu esteja sendo injusto. Talvez o objetivo das recentes descobertas seja outro: aliviar o sofrimento de soldados em situações de combate, por exemplo, apagando experiências traumáticas e colocando tardes de verão onde antes havia destruição e morte.

Sem falar de vítimas de crimes ou acidentes para quem um "reset" mental seria uma benesse. Sobre esses casos extremos, manda a prudência que nada diga.

Mas será preciso lembrar como as sociedades contemporâneas foram medicalizando os mais básicos sentimentos humanos --o medo, a ansiedade, a angústia-- procurando uma resposta química e imediata para eles?

Se hoje declaramos guerra às tristezas presentes, por que não declarar outra contra as tristezas passadas?

Quase todos recusamos a máquina de prazer de Nozick. Mas às vezes pergunto se o fazemos mesmo por questões de princípio --ou pela razão mais prosaica de que essa máquina não existe ainda.

Monday, July 15, 2013




E depois que o corpo se acalmou

e ouviu a voz interna a dizer que sempre passa

tudo voltou a ser como antes:

o sono, a paz, o apetite...

Não mais aquela expectativa

que tinha tanto de alegria, mas redundava triste

 

Agora, a análise fria:

por trás do gatilho o tédio da coisa repetida,

o coração batendo igual,

a sucessão monótona dos dias

pouco a guardar na memória, só rotina

altos e baixos que o tempo uniformiza

 

Como um meteoro, você caiu na minha vida

E tão rápido como ele ...  foi esquecido.

 

Cecília






E depois que o corpo se acalmou

e ouviu a voz interna a dizer que sempre passa

tudo voltou a ser como antes:

o sono, a paz, o apetite...

Não mais aquela expectativa

que tinha tanto de alegria, mas redundava triste

 

Agora, a análise fria:

por trás do gatilho o tédio da coisa repetida,

o coração batendo igual,

a sucessão monótona dos dias

pouco a guardar na memória, só rotina

altos e baixos que o tempo uniformiza

 

Como um meteoro, você caiu na minha vida

E tão rápido como ele ... foi esquecido.

 

Cecília

O rosto da adúltera de Jesus

Luiz Felipe Pondé

 

A agonia entre Deus e seus eleitos molda seus rostos marcados por uma tensão moral

Então, Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito preocupadas com a retidão da lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que havia sido pega em adultério. Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia para que Jesus fizesse valer a lei: morte da adúltera por apedrejamento.

Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las nas praças seja um "direito da soberania popular revolucionária", enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental de vida ou por outra forma de lei (o fundamentalismo islamita).

E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar...

Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto modo de viver é algo que exige, como dizem los hermanos, "cojones". Jesus disse que quem tivesse livre de pecado que atirasse a primeira pedra. Todos foram embora.

Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos do bem, moral ou político.

Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega. Naquele, o "regime da verdade" (ou modo de busca da verdade) é interno e moral, na filosofia grega é externo e político.

O problema de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou argumento, inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é Deus, e Ele sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há como mentir para outro homem ou para assembleia "soberana", como na filosofia ou democracia gregas. Segundo o crítico George Steiner, o Deus de Israel irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.

Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos outros numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a verdade em si do que se fala.

O problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se minto para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na privada, o da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da psicologia profunda.

Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A preocupação com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de quem diz ser justo.

Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral.

O crítico Erich Auerbach, no seu "A Cicatriz de Ulisses", parte da coletânea "Mímesis", reconhece este traço do texto hebraico: a relação de atenção e agonia entre Deus e seus eleitos molda o herói bíblico, dando a ele um rosto marcado por uma tensão moral.

Ainda na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus, em seus belos "Salmos", O encanta justamente porque expõe seu coração sem qualquer tentativa de mentir para si mesmo.

Santo Agostinho com suas "Confissões" faz eco a David. A literatura monástica e mística medievais cultivou este espaço até seu ressurgimento no século 19 no pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o "mago do norte", ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na verdade interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à psicanálise.

A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar para si mesmo ao invés de olhar para os outros. Em vez de cultivar uma filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os demônios desvelam nossa própria face.

 

Monday, June 10, 2013

Ferreira Gullar 


Na boca dos vizinhos

Digo que meus poemas nascem do espanto, de algo que põe diante de mim um mundo sem explicação

Ao chegar à caixa do supermercado, a moça que ali atendia me falou: "É verdade que o senhor vai parar de escrever poesia? Não faça isso, poeta, por favor!". Não acreditei no que ouvira. Aquela moça, que mal conheço e passa o dia a cobrar pelas compras dos fregueses, sabe quem sou eu e lamenta que eu não vá mais escrever poesia! "Mas quem lhe disse isso", perguntei, e ela: "Li naquele jornalzinho que o pessoal distribui de graça".

Só então me lembrei da entrevista que havia dado a um jornal de bairro e que fora publicada com um título mais ou menos assim: "Gullar diz que não vai mais escrever poesia".

-- Não foi bem isso que eu disse --expliquei à moça da caixa. Afirmei foi que talvez não venha mais a escrever poesia. Não disse que decidi não escrever mais.

Peguei minhas compras e me dirigi para casa, um tanto surpreso com aquela conversa. A moça não apenas deu importância ao que saíra no jornal, como lamentara minha suposta decisão. Jamais pensara que minha poesia interessasse a uma caixa de supermercado. Na minha visão equivocada, às pessoas do povo o que importa são as novelas de televisão. Daí o meu espanto.

Mas o espanto não parou aí. Dias depois, ao atravessar a rua, uma senhora me interpela e me diz que seu filho de dez anos ficara muito triste ao saber que eu ia parar de escrever poesia. "Ele sabe seus poemas de cor." Expliquei-lhe que não foi aquilo o que disse ao repórter. "Diga a seu menino que a poesia sopra onde e quando quer, ninguém manda nisso."

E segui meu caminho, feliz de saber que um garoto de dez anos ama meus poemas. Só me resta agora pedir às Musas que me ajudem e não me deixem parar de fazer poemas.

De qualquer modo, vendo que a notícia se alastrara e que, para minha surpresa, há quem deseje que eu continue a escrever poesia, sinto-me na obrigação de esclarecer o assunto. A coisa é a seguinte: escrever ou não escrever poesia não é coisa que se decida. Logo, não foi o que eu declarei àquela repórter do jornal de bairro.

Na verdade, sempre que termino de escrever um livro de poemas, tenho a impressão de que não vou escrever mais, de que a fonte secou. A primeira vez que isso aconteceu foi com "A Luta Corporal", cujos últimos poemas datam do começo de 1953.

Ao escrever o poema "Roçzeiral", em que desintegrava a linguagem, achei que não iria escrever mais. Naquela vez, pelo menos havia uma razão efetiva, já que, ao desintegrar o discurso poético, tornava inviável seguir escrevendo. Mas a coisa se repetiu, anos depois, quando publiquei "Barulhos", quando publiquei "Muitas Vozes" e, recentemente, ao dar por concluído "Em Alguma Parte Alguma".

Creio que isso se deve ao fato de que não planejo nada, muito menos meus livros de poemas. De repente, descubro um tema novo, um veio que passo a explorar até esgotá-lo. Isso demora anos, porque, também, ao concluir cada poema, tenho a impressão de que o veio se esgotou.

Sim, pois do contrário, não daria por findo o poema. Mas chega um momento em que o veio se esgota mesmo, percebo que não há mais nada a retirar dali. Dou o livro por concluído e aí vem a sensação de que não escreverei mais. Sim, porque se não descobrir outro veio, não terei o que escrever. E enquanto não o descubro, essa sensação se mantém até que, de repente, um belo dia, a poesia volta a me iluminar.

Os fatos têm mostrado que acabo por descobrir um veio novo e volto a escrever. Pelo menos foi o que aconteceu até então. Sucede que o último poema do meu último livro "Em Alguma Parte Alguma" data de novembro de 2009, e até hoje, três anos e sete meses depois, não voltei a fazer nenhum poema.

Nunca fiquei tanto tempo sem escrever poesia. E não me sinto motivado a escrever. Sempre digo que meus poemas nascem do espanto, ou seja, de algo que põe diante de mim um mundo sem explicação. É essa perplexidade que me faz escrever. Pode ser que, aos 82 anos de idade, já nada mais me espante na vida.

Mal escrevo essas palavras e chega Maria, empregada minha há mais de 20 anos, que nunca leu um poema meu e nunca tocou nesse assunto durante todos esses anos, e me diz:

-- Seu Gullar, é verdade que o senhor resolveu não escrever mais poesia? É o que o pessoal anda dizendo por aí.

 

Não devemos nos definir poetas, no máximo escritores.
A poesia parece estar a serviço de nós, não o contrário.
Não fazemos poesia quando queremos, mas quando, iluminados, ela acontece.
Cecília

 

Saturday, October 20, 2012

Outro lado de mim



 

Rueira, caçadora de emoções

Ora não me reconheço

Falta-me o espírito travesso

A ânsia de sair porta afora

Me inserir no contexto

Sentir na pele sol, vento, chuva

Ouvir o rumor das ruas

Ver, ser visto

Ser parte de fotografia

Que retratasse o momento

O meu tempo

Como aquelas de outros tempos

Que não me canso de olhar

Por enquanto me aprisionei numa ilha

Onde  só chega o que eu deixo chegar

Um mundo restrito ou infinito

Conforme o apreenda o olhar

 

 

Ninho? Sombra? Fase?

Não sei.

Apenas deixo a alma se esparramar...

Cecília

20/10/12

 

Monday, October 15, 2012

Enxame de abelhas

 

O apartheid do bem é a nova invenção do governo. E nós pagamos essa farra fascista


"Vou me pintar de afrodescendente", gritou irritado um amigo meu carcamano, um apelido carinhoso que espero nunca ser considerado assédio cultural.

Às vezes, à noite, sou atormentado pelo que dizia Paulo Francis: os "frouxos venceram", não vamos poder pensar, dizer, criar, intuir mais nada que não esteja na cartilha dos autoritários. Sob o signo dos ofendidos, cala-se a alma, o humor e a inteligência. Antes era em nome do racismo nazista, do novo homem comunista, das heresias, agora é em nome dos "ofendidos".

Este meu amigo, normalmente, é uma pessoa doce, mas às vezes perde as estribeiras. Outro dia, acabou indo com a esposa e as duas filhas, num domingão quente pra burro, ver a Bienal no Ibirapuera.

Parou o carro longe (claro, trânsito infernal, sem lugar para parar o carro, e chamam isso de lazer...) e teve que fazer as três meninas andarem até o pavilhão sob o Sol, obviamente o culpando por tudo.

A mulher sempre culpa o marido por tudo de forma tranquila e sem pudores. Estas queixas vêm seguidas de beijos, sorrisos e sexo, quando passa a irritação, que numa mulher passa na mesma velocidade da luz em que ela cai no tédio.

Aprendeu uma dura lição: Ibirapuera domingo é para iniciantes (a menos que chova, aí é legal...), pior quando tem Bienal porque aí se junta o povo que quer ter saúde com o povo que quer fingir que gosta de arte. O mundo está dividido em dois grupos: os que gostam de arte e os que gostariam de gostar de arte.

O mesmo vale para jazz, blues e música erudita.

Outro dia ele foi fazer aquele negócio chamado "controlar", mais uma taxa para pagarmos. Esta é "verde". O burocrata técnico recusou seu carro por um detalhe qualquer. Daí, ele teve que começar tudo de novo. A vida, passo a passo, se torna uma teia infernal de controles.

O melhor é não ter carro, não dar emprego a ninguém, não casar, não ter filhos, enfim, negar investimento a um mundo controlado pelos "babacas do bem".

Mas não é disso que quero falar, mas sim da irritação do meu amigo carcamano com o novo edital racista do Ministério da Cultura. Todo mundo ouviu falar do edital para afrodescendentes (não ouso usar qualquer outra expressão por medo de ter minha vida destruída pelos "amantes da liberdade").

Enquanto esses tecnocratas ideológicos não conseguirem criar de fato racismo à la Ku Klux Klan no Brasil, não sossegarão.

A indústria do assédio jurídico cresce e os amantes da liberdade que tanto criticam a maldita ditadura e pedem uma Comissão da Verdade só para um dos lados, gozam com as novas formas de autoritarismo que empesteiam nossas vidas.

O apartheid do bem é a nova invenção do governo. Tanta gente morreu na Segunda Guerra Mundial, tanta gente morreu na mãos dos comunistas, e o fascismo venceu assim como um enxame de abelhas vence: começa devagar, você achando que está lutando apenas contra uma, mas, zumbindo, elas invadem sua casa e sua vida.

No mesmo processo, querem proibir Monteiro Lobato. Adianto que não gosto da obra de Monteiro Lobato, nem ela me marcou na infância. Preferia as aventuras de Abraão, Moisés e Deus. Mas meu gosto pouco importa.

Por que não fazem esses fascistas assistirem à famosa cena em que nazistas queimavam livros na Alemanha de Hitler? O que esses tarados não entendem é que os nazistas também achavam que tinham um bom motivo e que aqueles livros degeneravam as novas gerações. Alguma semelhança?

E ainda, para piorar, quem paga essa farra fascista somos nós. O governo e sua máquina imoral de arrecadação de impostos, este sócio parasita de cada pessoa que trabalha no país, alimenta tecnocratas aos montes deixando que inventem medidas discriminatórias dizendo que são do bem.

O argumento de que somos todos culpados pela escravidão é falso. Não conheço, no meu círculo de pessoas, ninguém que tenha tido escravos ou ganhado dinheiro com a escravidão ou coisa parecida.

Melhor seria este governo fascista criar uma educação decente de uma vez por todas para acabar com a pobreza cultural do país em vez de ressuscitar medidas racistas.

Luiz Felipe Pondé



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