Monday, March 31, 2008

Reminiscências e coisas mais

Cobriu de cinzas minh’alma quando parti.
Na bagagem sabor de jabuticabas,
o mistério dos porões escuros,
chiado dos carros de boi na modorra do dia
domingos chuvosos
lamento de flauta pela vidraça molhada.
Um sonoro badalar. De onde é o sino ?
É o das Dores, é o de Santo Antônio?
Sons de matraca no silêncio das ruas.
Casas abandonadas - morada da Mãe do Ouro
visão fantasmagórica nas noites de prata.
O canto do pássaro no galho
doces manhãs de neblina,cheiro de infância.

O trem engole a serra.Último silvo
ponto final de uma meninice dourada.
O tempo derrama a saudade
e molha o peito com água dos olhos.

Anna Ayres

Friday, March 28, 2008

Corpos idosos e eróticos

Não é mais ridículo, aos 60 ou mais, querer uma companhia de vida, um amor ou só uma transa
SE ME lembro direito, 20 anos atrás era freqüente participar de conversas animadas em que se discutia a questão seguinte: devemos ou não deixar nossos filhos e nossas filhas adolescentes dormir em casa com suas namoradas ou seus namorados? Aparentemente, o partido do sim ganhou. Em geral, a razão que ele invocava (e ainda invoca) era a segurança: é melhor que minha filha esteja no seu quarto com o namorado do que em baladas perigosas ou, pior ainda, "brincando" no carro numa rua deserta. Também contava o fato, comprovado, de que um namoro é quase sempre uma experiência mais rica e mais "madura" do que a agitação das turminhas. Naquelas conversas dos anos 80, eu ficava em cima do muro e torcia, de leve, pelo partido do não. Achava problemático que os adolescentes tivessem uma espécie de vida conjugal sem ter conquistado sua autonomia: para juntar-se com um parceiro ou uma parceira (a ponto de dormir na mesma cama com ele ou com ela a cada noite ou quase) seria melhor, primeiro, não precisar mais se definir como filho ou filha. Continuo pensando que eu tinha um pouco de razão: prova disso, os inúmeros casamentos em que um dos membros do casal se queixa de que o outro continua sendo mais filho ou filha do que marido ou mulher. Mais um detalhe. Freqüentemente, a conjugalidade precoce e protegida de dois adolescentes na casa dos pais é uma caricatura da conjugalidade adulta menos interessante: consiste mais em assistir, na cama, a filmes alugados do que em sair juntos pelo mundo ou mesmo em praticar a arte difícil de se descobrir mutuamente. Seja como for, o partido do sim ganhou sobretudo por uma razão que não se confunde com as justificações habitualmente propostas. Acontece que, nas últimas décadas, pela freqüência dos divórcios, a metade dos jovens viveram sua adolescência em companhia de apenas um de seus pais. E muitos desse jovens foram espectadores assíduos (e, às vezes, até confidentes) do folhetim das aventuras e dos namoros de sua mãe ou de seu pai. E, claro, com que moral o pai ou a mãe divorciados proibiriam o filho ou a filha de levar seus amores para casa se eles mesmos não fazem diferente? Essa grande mudança na vida familiar teve dois efeitos significativos e, a bem dizer, positivos. O primeiro é que os adultos começaram a levar mais a sério a vida amorosa de seus filhos adolescentes: as brincadeiras condescendentes (o detestável "e aí, tem namorado?") acabaram ou quase. O segundo efeito aparece agora, 20 anos depois: à força de conviver com os namoros, os namoricos e as decepções, em suma, com as alegrias e as tristezas das paixões de seus pais divorciados, os adolescentes abandonaram a idéia (freqüente em minha geração) de que a vida amorosa e sexual dos adultos seria uma mesmice comportada -que, aliás, no caso dos pais, teria acabado de vez depois da troca mínima que foi necessária para que eles, os filhos, fossem concebidos. Os adolescentes que tiveram essa experiência são agora jovens adultos, e seus pais são idosos. Apesar da valorização cultural do corpo jovem e sarado como se fosse o único desejável e capaz de desejar, é lógico que esses jovens adultos estejam dispostos a reconhecer que a terceira idade não corresponde a nenhuma aposentadoria do amor e do sexo, ou melhor ainda, que ela não corresponde a nenhuma "maturidade" das paixões: os "idosos" amam e desejam com o mesmo transporte e a mesma ingenuidade dos adolescentes (e, claro, dos ditos adultos). De repente, hoje, não é ridículo ter 60 anos ou mais e propor um perfil num site de encontros amorosos na internet; não é ridículo, aos 60 ou mais, querer uma companhia para o resto da vida, um amor ou mesmo apenas uma transa. O bonito filme de Laís Bodanzky, "Chega de Saudade", que estreou na semana passada, nos leva para um baile. Há muitos assim, pelo país afora, em que homens e mulheres da terceira idade se procuram e dançam a cada semana. Estamos aprendendo, aos poucos: a grandeza (e a mesquinhez) do amor e do desejo não têm estação. Mas não é apenas por isso que o filme é tocante: é porque no baile, na pista de dança, o enlace do parceiro ou da parceira revela que estes corpos, que talvez tenham chegado mancando, endurecidos pela idade e de pés inchados, são corpos bonitos, eróticos, vivos.

Contardo Calligaris

Thursday, March 20, 2008

O moralizador

CONTARDO CALLIGARIS
Moralizador é quem impõe ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar
ELIOT SPITZER era governador do Estado de Nova York até sua resignação na semana passada.Sua fortuna política e sua popularidade eram ligadas à sua atuação prévia como procurador agressivo e inflexível contra os crimes financeiros e contra as redes de prostituição e seus clientes. Ora, descobriu-se que ele era freguês de uma rede de prostituição de luxo e que também recorria a artimanhas financeiras para que seus pagamentos -substanciais: US$ 80 mil (R$ 140 mil)- não fossem identificados. Esse fato de crônica (no fundo, trivial) foi para a primeira página dos jornais do mundo inteiro -aparentemente, pela surpresa que causou: quem podia imaginar tamanha hipocrisia? Esse "espanto" geral foi, para mim, a verdadeira notícia da semana. Começou no dia em que Spitzer deu sua primeira declaração pública, reconhecendo os fatos e a culpa, ao lado de sua mulher, impávida. No programa "360", da CNN, o âncora, Anderson Cooper, convocou dois comentaristas. Um deles, uma mulher, psicóloga ou psiquiatra, ofereceu imediatamente uma explicação correta e óbvia. Ela disse, mais ou menos: é muito freqüente que um moralizador raivoso castigue nos outros tendências e impulsos que são os seus e que ele não consegue dominar. Cooper (que já passeou pelos piores cenários de guerra e catástrofes naturais) quase levou um susto e cortou rapidamente, acrescentando que essas eram, "claramente", suposições, hipóteses etc. Não é curioso? Em regra, prefiro as idéias que são propostas, justamente, como hipóteses ou sugestões que cada um pode testar no seu foro íntimo. Mas, hoje, considerar a dita declaração da especialista como uma suposição parece ser uma hipocrisia pior (e mais perigosa) do que a de Spitzer. Afinal, depois de um bom século de psicologia e psiquiatria dinâmicas, estamos certos disto: o moralizador e o homem moral são figuras diferentes, se não opostas. 1) O homem moral se impõe padrões de conduta e tenta respeitá-los; 2) O moralizador quer impor ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar. Na mesma primeira declaração, Spitzer confessou, contrito, que ele não conseguira observar seus próprios padrões morais. Tudo bem: qualquer homem moral poderia confessar o mesmo. Mas ele acrescentou imediatamente que, a bem da verdade, esses eram os padrões morais de quem quer que seja. Aqui está o problema: o padrão moral que ele se impõe, mas não consegue respeitar, é considerado por ele como um padrão que deveria valer para todos. Com que finalidade? Simples: uma vez estabelecido seu padrão como universal, ele pode, como promotor ou governador, impô-lo aos outros, ou seja, ele pode compensar suas próprias falhas com o rigor de suas exigências para com os outros. Quem coloca ruidosamente a caça aos marajás no centro de sua vida está lidando (mal) com sua própria vontade de colocar a mão no pote de marmelada. Quem esbraveja raivosamente contra "veados" e travestis está lidando (mal) com suas fantasias homossexuais. Quem quer apedrejar adúlteros e adúlteras está lidando (mal) com seu desejo de pular a cerca ou (pior) com seu sadismo em relação a seu parceiro ou sua parceira. O exemplo da adúltera, aliás, serve para lembrar que a psicologia dinâmica, no caso, confirma um legado da mensagem cristã: o apedrejador sempre quer apedrejar sua própria tentação ou sua culpa. A distinção entre homem moral e moralizador tem alguns corolários relevantes. Primeiro, o moralizador é um homem moral falido: se soubesse respeitar o padrão moral que ele se impõe, ele não precisaria punir suas imperfeições nos outros. Segundo, é possível e compreensível que um homem moral tenha um espírito missionário: ele pode agir para levar os outros a adotar um padrão parecido com o seu. Mas a imposição forçada de um padrão moral não é nunca o ato de um homem moral, é sempre o ato de um moralizador. Em geral, as sociedades em que as normas morais ganham força de lei (os Estados confessionais, por exemplo) não são regradas por uma moral comum, nem pelas aspirações de poucos e escolhidos homens exemplares, mas por moralizadores que tentam remir suas próprias falhas morais pela brutalidade do controle que eles exercem sobre os outros. A pior barbárie é isto: um mundo em que todos pagam pelos pecados de hipócritas que não se agüentam.

Friday, March 14, 2008

Não fomos amantes
Não nos perdemos em beijos e abraços apaixonados.
Não nos sentimos fragmentados se distantes.

Não fomos amigos
Faltou cumplicidade, apoio, carinho,
quando pedras interceptaram nosso caminho.

Não fomos companheiros
Não desfrutamos juntos de uma hora inteira.

O que fomos senão necessária fantasia,
matéria para a criação de um quadro
ou de uma poesia?

Alma sem rosto, que a memória apaga,
tão rápida a passagem, vazia de significado.
Só uma valsa em sonho juntos dançada.

Cecília Quadros

Soneto XXIII

Ao abrires a porta para a rua
Deixa o mar em teu quarto simplesmente,
E pede que teu carro ou a falua
Trafeguem pela vida sem repente.
No elevador procures disfarçar
Se anêmonas flutuarem na camisa,
E se houver simples gesto a marulhar
Essas lembranças que respira a brisa.
Ao abrires a porta é bom fechares
Os segredos em cofre de coral,
Não banhes em rotina os teus mares,
Esses domínios de amplidão e sal.

Se voltares da rua, pouco importa,
Despede teus naufrágios junto à porta.

Paulo Bomfim

Monday, March 10, 2008

Seres complementares
Deles está cheia a minha vida.
Alguns vivem na sombra,
Outros em sonho,
pouco ou nada
tendo a ver com a realidade.
Mas esta sustentam
com mãos invisíveis
amigas
tornado-a mais suportável...

03-11-04

Sunday, March 02, 2008

Minha Terra

Em minha terra me sinto tão acolhida e integrada,
que às vezes me faltam olhos críticos
ou de justo encantamento
- a ela não pareço estar suficientemente atenta .
Se viajo, outras seguram o meu olhar curioso,
predisposto a delas gostar
- há quase sempre a intenção de voltar.
Mas é à minha terra que sempre retorno,
bendizendo o meu lugar no mundo,
aquele que reconheço como pátria
e me reconhece como filha.

Terra minha,
não apenas um espaço físico,
mas um conjunto de sentimentos,
modos de ser, posturas,
que definem sua alma,
nossa alma brasileira...

Cecília
28-02-08