Monday, September 11, 2006

A música das palavras

Figura mítica do piano, o austríaco Alfred Brendel fala de sua outra paixão: a poesia
FLORENCE NOIVILLE
Nascido em 1931, em Wiesenberg, na Morávia, parte da então Tchecoslováquia, Alfred Brendel gravou seu primeiro disco, o "Quinto Concerto" de Prokofiev, aos 24 anos. Contrariando as lendas que o retratam como cerebral e austero, esse monstro sagrado do piano revela um substrato sutil de humor e de zombaria, também presente em seus ensaios sobre música. Na entrevista abaixo, ele fala de uma outra paixão que freqüenta: a poesia.
PERGUNTA - O que o conduziu à poesia? ALFRED BRENDEL - Comecei a escrever poesia de um modo imprevisível. Eu estava em um avião, a caminho do Japão, não conseguia dormir e, no limbo do torpor sem sono, me ocorreu um poema. Surgiu de maneira quase automática. Mais tarde, depois de ter escrito cerca de 15 poemas, comecei a estudá-los para ver se me lembravam a voz de outra pessoa ou se eu podia supor que minha voz literária era singular. A conclusão a que cheguei foi a de que eu tinha voz própria.
PERGUNTA - Há outros artistas que saíram de seu campo habitual de criação: Picasso escreveu "O Desejo" quando preso em uma fila, Kandinsky também escreveu poemas. No seu caso, como o poeta se situa em relação ao músico? BRENDEL - No meu caso, não se trata de um hobby. Para mim, a escrita sempre foi uma segunda natureza, como se um alter ego estivesse se exprimindo. Escuto e critico meus poemas como se estivesse lendo textos alheios; textos estranhamente familiares, mas que me conduzem a regiões desconhecidas de mim mesmo. Você conhece "Cosmicomics", de Italo Calvino? É um dos meus livros prediletos, uma encruzilhada do fantástico e da semiótica. Em meus poemas, creio que há muito de "cosmicômico".
PERGUNTA - A literatura sempre desempenhou papel importante em sua compreensão do mundo? BRENDEL - Estou convencido de que é possível compreender melhor o mundo por meio dos grandes romances do que observando as pessoas. Em minha juventude, fui muito influenciado por Thomas Mann, Herman Hesse e Elias Canetti. Mas foi Robert Musil que ocupou a posição de verdadeiro escritor formativo em minha vida. O que me fascinava era a experiência mística tal qual observada por um cientista. É preciso sempre nos perguntarmos com que obras desejamos viver.
PERGUNTA - Suas fontes de inspiração parecem ecléticas, não exclusivamente literárias... BRENDEL - Minhas idéias podem ser inspiradas por notinhas de jornal ou por um cartoon da revista "New Yorker", ou por lembranças de poetas que admiro. Há também o cinema -Chaplin, "Zelig", de Woody Allen, e, sobretudo, Buñuel, cujos filmes libertam algo em mim. Essa idéia inicial é que orienta tudo que acontecerá a seguir. Como na música, um tema nasce, desenvolve-se e dá origem a variações.

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