Saturday, March 31, 2007

Antecipação

Era um domingo, como tantos outros, família reunida na casa de meus pais: os próprios, as três filhas, genros e netos. O único filho varão morava nesse tempo no interior, e por isso raramente estava presente nessas reuniões de domingo com a respectiva família.
Já havíamos almoçado, comida de restaurante, pois era folga da empregada e nossa mãe, que tudo dirigia, como um maestro à frente de sua orquestra, já havia nos convocado para arrumar a cozinha. E o fizemos, trabalhando como formiguinhas...
De vez em quando uma criança se aproximava:
- Vó, tem uma balinha?
- Na gaveta do armário, meu filho, pode pegar, mas ofereça para os outros também.
Eu e minhas irmãs não éramos radicais e entendíamos o carinho da avó. Naqueles dias podia tudo: refrigerantes, balas, um tanto de travessura, que sempre terminava com a intervenção do avô, tido como bravo, ou dos pais, zelando para que não perturbassem demais o sossego dos avós, já com certa idade. Primos reunidos nos domingos... O que esperar?
Depois da cozinha arrumada, era ficar na sala de estar com um olho no jornal, outro nas crianças, nos distraindo em boa companhia .
Na hora do cafezinho, púnhamos a conversa em dia.Quando terá sido o diálogo que se segue?
- Estou tendo aulas de piano com a vizinha, diz Helina
- Mãe, não me acostumo no apartamento novo. Me sinto como numa gaiola de ouro( agora é a vez da Cecília).
- O Jorge Alberto tem talento para a música e gosta de ouvir comigo os clássicos (mamãe falando)
- Cecília, a Carolina precisa aparar os cabelos. Está uma Maria Madalena...(ainda ela)
E por aí ia...
Às vezes o barulho das crianças se tornava insuportável, devido ao brinquedo da moda, o velotrol, que todas tinham e ficavam guardados na garagem da casa. Que fazer se em nossos apartamentos não havia espaço para eles?
Eram assim nossos domingos e não nos ocorria vivê-los de forma diferente. Para o cinema, teatro, encontro com amigos, havia todos os outros dias...
Naquele domingo, acima referido, estava eu ensimesmada, mais observando do que participando do movimento da casa, tudo vendo como um filme, quando me baixou uma tristeza infinita, consciência aguda da transitoriedade da vida. Até quando teríamos esses domingos? O tempo por certo tudo modificaria: meus pais tinham idade, quanto mais viveriam? As crianças cresceriam e não mais se conformariam com essa rotina. E nós, nossa saúde, harmonia, nada era garantido.
Contive as lágrimas fui para o lavabo e lá as deixei rolar livremente.
Depois:
- Cecília, você chorou? Seus olhos estão vermelhos.
- Não, mãe, por que motivo?
Para que angustiá-la com uma dor, que poderia lhe ocorrer a qualquer momento, mas que naquele instante era minha? Para que desassossegar os que tanto amava falando de finitude, mudanças indesejáveis, mas inevitáveis, da dor no peito, da pontada?
Acho que atribuí a vermelhidão do olhos às minhas lentes, ou a algum pequeno desentendimento durante a semana que findara.
Não sei se os enganei. Eu era mesmo tida como sensível, “manteiga derretida”...
Fui deixada no meu canto sossegada, sofrendo silenciosamente por antecipação as mudanças que viriam. E vieram. Primeiro foi meu pai que partiu, o que levou minha mãe a se mudar para um pequeno apartamento. Depois ela se foi e em seguida o meu cunhado, ainda novo.
A casa foi vendida, assim como o apartamento na praia, onde a família também se reunia alegremente.
Tantas mudanças pressentidas e sofridas naquela tarde, tão igual às outras...
Coisas, que só a alma explica...

Cecília

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