Tuesday, August 13, 2013

Luiz Carlos Mendonça de Barros

É o crescimento da renda, estúpido!

Uma economia que fez a renda média da sociedade dobrar em 17 anos não pode estar à beira do abismo

Embora tenha durado apenas o tempo de uma flor de manacá, a exposição do aumento dos índices de IDHM dos municípios do Brasil na mídia precisa ser recuperada. Talvez tenha sido a notícia mais importante do ano para os analistas que procuram olhar o Brasil sob a ótica das mudanças estruturais de nossa sociedade.

Os números são impressionantes e mostram um país que passa de uma posição vergonhosa no campo de desenvolvimento social para a companhia de sociedades mais justas e ricas. Mas essas informações entram em choque com o clima de que estamos próximos de um desastre e que tomou conta de boa parte dos agentes econômicos --empresários e financistas-- nos últimos meses.

Não é possível que uma economia que fez com que a renda média real da sociedade dobrasse em 17 anos esteja à beira do abismo, mesmo que os resultados nos últimos três anos sejam decepcionantes.

Em 1993, a renda média anual do brasileiro era --a valores reais de 2012-- de R$ 5.016,00, equivalentes ao câmbio também de 2012 a US$ 2.500. Em 2010, 17 anos depois, esse número atingiu R$ 10.884,00, ou seja, próximo de US$ 5.500. Um aumento de mais de 100% no período, o que corresponde a uma taxa anual composta de 4,7%.

Mesmo se tomarmos como base a renda média de 1994, início do período do real, os números chamam a nossa atenção. Nesses 16 anos, entre o início do período de estabilidade de nossa moeda e o fim do ciclo de crescimento em 2010, o aumento real da renda média do brasileiro chegou a 64%, ou seja, cresceu a uma taxa anual de 3,14%.

Todo economista sabe --ou deveria saber-- que o fator mais importante por trás das mudanças sociais é o crescimento econômico por um prazo longo. Importa menos a taxa anual de crescimento e mais a duração do período em que esse crescimento se sustenta.

Uma segunda verdade em que acredito é a que nos diz que o principal --e mais difícil-- fator por trás do crescimento econômico sustentado é o aumento da renda real das famílias. Isso é verdade principalmente em uma sociedade de cigarras como a nossa, em que o consumo representa mais de 2/3 do PIB (Produto Interno Bruto).

Por isso, os dados do Pnud da ONU, publicados recentemente, não surpreenderam a equipe de economistas da Quest Investimentos. Afinal, o quadro inicial das apresentações institucionais aos nossos clientes, desde 2007, apresenta um gráfico da renda real calculada pelo IBGE entre 1978 e 2013 e mostra, por meio de uma linha de tendência, seu comportamento nesse período.

Em 1979, último ano do milagre econômico dos militares, a renda real anual era de R$ 7.464,00. Em 1993, fim do período em que tivemos uma hiperinflação histórica, o brasileiro médio ganhava anualmente apenas R$ 5.016,00. Ou seja, uma queda de mais 30% em 14 anos. Podemos contar essa mesma terrível história dizendo que, nesse período negro, o brasileiro empobreceu em média mais de 2% ao ano.

A mais importante consequência desse longo período de crescimento que tivemos depois do Plano Real pode ser vista --a olho nu-- em uma fotografia da sociedade brasileira dividida em classes de renda. Ela também faz parte, desde 2006, das apresentações da Quest como um de seus pontos centrais.

Para chegar a ela, dividimos os brasileiros em apenas duas classes de renda: na primeira estão aqueles que estão inseridos na economia de mercado, ou seja, têm carteira de trabalho assinada, acesso a crédito bancário e no comércio e estão protegidos por programas sociais como aposentadoria, seguro-desemprego e outros que não o Bolsa Família.

Na outra classe, estão os brasileiros que vivem na informalidade e não têm acesso às instituições do mundo formal.

Em 1993, os brasileiros da classe formal representavam um terço da população, ficando o grupo informal com os outros dois terços. Hoje temos a situação oposta, ou seja, dois terços vivem no mundo formal e o outro terço no informal. Uma mudança extraordinária e muito difícil de ser encontrada na história das nações emergentes como a nossa.

Peço agora ao leitor que volte ao título desta coluna.
Luiz Felipe Pondé

A noite escura de Terrence Malick

No cristianismo, amor não é mero afeto, é substância que nos faz existir

"Amor Pleno", novo filme de Terrence Malick, é um exemplo do que o místico espanhol do século 16 San Juan de la Cruz chamou de "noite escura da alma". Não é à toa que o padre (Javier Bardem) tem um discurso muito colado ao do místico espanhol. Ele é o personagem central da narrativa. Como sempre, sem teologia e filosofia, não se entende Terrence Malick.

Por consequência, o filme está próximo do texto bíblico "Cântico dos Cânticos", peça fundamental da literatura mística ocidental, influência marcante no místico espanhol: "Onde Te escondestes que não Te encontro, meu Deus?". No "Cânticos", o amor entre Deus e a humanidade é representado pelo amor entre um homem e uma mulher, suas agonias, prazeres e ausências. "A Noite Escura da Alma" é, como "Cânticos", um texto erótico.

"O amor de Cristo pela sua igreja é como o amor de um homem e uma mulher", diz Bardem. Eis a chave para entendermos o poema místico que é "Amor Pleno". No cristianismo, amor não é mero afeto, mas a ação que nos faz existir. Sem ele, a vida esvazia.

Nesta chave, o amor entre Ben Affleck e "suas" duas mulheres está também "sob" o véu da noite escura da alma, assim como está o amor do padre por Deus e o mundo. Ele é incapaz de amar, elas sofrem por isso.

O filme encerra com a imagem do Mont Saint-Michel, na França, local onde o casal vai no começo de seu amor. Esta abadia é símbolo da vida monástica medieval. Os filósofos vitorinos (Hugo e Ricardo da Abadia de São Vitor, século 12), em sua teoria sobre o amor, entendiam que o amor, posteriormente dito romântico, era da mesma substância do amor de Deus.

Assim como é difícil para nós mantermos o amor por Deus, é difícil sustentarmos o amor entre um homem e uma mulher. Nossa natureza "caída" não suporta o "peso" do amor. Este "peso" assume várias formas, entre elas, o compromisso com ele, principalmente no vazio que o cotidiano instaura em nosso coração e corpo sedentos.

Nossa natureza tende "para baixo", para o tédio e a insatisfação, como diz a mulher francesa no filme quando se refere às duas mulheres que existe nela: uma tende para o amor, para o alto, a outra para baixo, para a terra.

Não é à toa que ela, a francesa, após uma longa conversa com a amiga italiana, niilista e entediada, chega ao adultério, símbolo máximo do tédio e da degradação do amor. Quando nos distanciamos do amor, nos dissipamos num desejo que nos leva ao nada.

Mas, o que vem a ser esta "noite escura da alma"? Quando falamos de mística, pensamos normalmente em êxtase, em "gozo místico". Mas, a "noite escura" é o momento em que a alma, conhecedora de Deus, deixa de senti-lo no seu cotidiano, o que a leva à solidão, ao desespero e à dúvida. Uma verdadeira mística da agonia.

Neste momento, o padre lembra a máxima do Evangelho: "Você deve amar", portanto, o amor não é mero sentimento, mas sim uma ação, como é dito no filme. Agir com amor, mesmo que não sintamos o amor. Para ele, continuar cuidando dos doentes, para o casal, continuar a cuidar um do outro, porque longe do amor, somos todos doentes, umas criaturas da noite que vagam numa escuridão sem fim. No escuro, não é só o outro que desaparece, mas nós também.

O padre chega mesmo a lamentar o fato que, em seu ministério, ele deve "fingir" sentimentos que não tem, assim como um casal deve continuar a amar (esta é a condição do amor como "ação" e não mero sentimento) mesmo quando a paixão desaparece.

Quando nos sentimos longe do amor (de Deus), vemos nosso nada, isso deixa nossa alma inquieta, sedenta. Como é dito em "Árvore da Vida", filme anterior de Malick, a vida sem amor "flashes by", apenas passa. Esta é a chave para passarmos do "Árvore da Vida" ao "Amor Pleno". A responsabilidade dos que "amam menos", como diz o padre, se referindo a ele e a Ben Affleck, é maior, porque são eles que enxergam melhor o vazio no coração da vida.

Os ecos da "noite escura" atingem toda a existência, para além da teologia, adentrando a solidão nossa de cada dia. O drama maior não é não ser amado, mas ser incapaz de amar.

Sunday, August 04, 2013

João Pereira Coutinho

Os falsários

Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas

Memórias falsas. Eis a nova descoberta científica publicada em revista da especialidade. Segundo a "Science", pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology conseguiram implantar memórias falsas no cérebro de ratinhos. Já tinham cometido uma outra proeza no passado: apagar certas memórias. Agora, o desafio foi implantá-las. Conseguiram.

Ainda estamos longe do Santo Graal: apagar más memórias e, se possível, conferir a cada ser humano um passado glorioso. Mas o futuro, tal como o passado, promete. Ou não promete?

Robert Nozick (1938-2002), um dos grandes filósofos do nosso tempo, achava que não. No seu magistral "Anarchy, State, and Utopia", Nozick pedia-nos para imaginar a seguinte situação: existe uma máquina do prazer a que os seres humanos se podem ligar. E, por esse simples processo, ter prazer a vida inteira. Quem daria o primeiro passo?

Poucos. Existe algo de incômodo na ideia de uma felicidade eterna, porém falsa. E esse incômodo tem nome: verdade. Ou, para usar uma palavra cara aos românticos, "autenticidade".

Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas e que a nossa felicidade seja o resultado de experiências, méritos ou virtudes reais.

Se tudo fosse resumido a critérios de prazer e desprazer, ninguém hesitaria em ligar-se à máquina de Nozick. E, no entanto, a maioria hesita.

Não conheço crítica mais devastadora ao utilitarismo nos tempos modernos. Seguindo o cálculo hedônico, o que interessa é proporcionar a maior felicidade ao maior número?

Não necessariamente, afirmava Nozick. Se a felicidade humana não é humana, ela perde qualquer valor para nós.

E o que é válido para a felicidade é válido para a infelicidade. Até porque a segunda é condição para haver a primeira.

Ironicamente, uma máquina de prazer permanente deixaria até de proporcionar prazer. Porque deixaria de haver contraste com as restantes iniquidades da existência: habitaríamos apenas um estado de normalidade entediante em que nada seria importante porque nada seria valorizado em si mesmo.

Sabemos o que é a felicidade porque sabemos o que é a infelicidade. E também porque aprendemos algo com as nossas infelicidades.

"Aprender" é o verbo: implantar memórias falsas já seria uma aberração ética. Mas apagar as más é mais que isso: é uma aberração epistemológica.

Sofremos como cães pelos erros que cometemos. Escolhas profissionais lamentáveis; amores cultivados e frustrados; atitudes egoístas, covardes, impensadas --quem atira a primeira pedra?

Mas sofremos e, com sorte, aprendemos. E existe algo de libertador (e de redentor) quando seguimos em frente e somos capazes de reconhecer os mesmos dilemas, as mesmas tentações, os mesmos traços de caráter --em nós e nos outros. E, claro, as mesmas consequências prováveis de certos atos e omissões.

É então que o passado, e sobretudo o insuportável passado, se torna nosso tutor privado: ao segredar-nos o que devemos evitar e abraçar com conhecimento de causa.

Todos precisamos de más memórias para evitar cometer os mesmos erros. Apagar essas memórias seria uma forma de nos condenarmos a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos. E a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos.

Talvez eu esteja sendo injusto. Talvez o objetivo das recentes descobertas seja outro: aliviar o sofrimento de soldados em situações de combate, por exemplo, apagando experiências traumáticas e colocando tardes de verão onde antes havia destruição e morte.

Sem falar de vítimas de crimes ou acidentes para quem um "reset" mental seria uma benesse. Sobre esses casos extremos, manda a prudência que nada diga.

Mas será preciso lembrar como as sociedades contemporâneas foram medicalizando os mais básicos sentimentos humanos --o medo, a ansiedade, a angústia-- procurando uma resposta química e imediata para eles?

Se hoje declaramos guerra às tristezas presentes, por que não declarar outra contra as tristezas passadas?

Quase todos recusamos a máquina de prazer de Nozick. Mas às vezes pergunto se o fazemos mesmo por questões de princípio --ou pela razão mais prosaica de que essa máquina não existe ainda.