Saturday, October 20, 2012

Outro lado de mim



 

Rueira, caçadora de emoções

Ora não me reconheço

Falta-me o espírito travesso

A ânsia de sair porta afora

Me inserir no contexto

Sentir na pele sol, vento, chuva

Ouvir o rumor das ruas

Ver, ser visto

Ser parte de fotografia

Que retratasse o momento

O meu tempo

Como aquelas de outros tempos

Que não me canso de olhar

Por enquanto me aprisionei numa ilha

Onde  só chega o que eu deixo chegar

Um mundo restrito ou infinito

Conforme o apreenda o olhar

 

 

Ninho? Sombra? Fase?

Não sei.

Apenas deixo a alma se esparramar...

Cecília

20/10/12

 

Monday, October 15, 2012

Enxame de abelhas

 

O apartheid do bem é a nova invenção do governo. E nós pagamos essa farra fascista


"Vou me pintar de afrodescendente", gritou irritado um amigo meu carcamano, um apelido carinhoso que espero nunca ser considerado assédio cultural.

Às vezes, à noite, sou atormentado pelo que dizia Paulo Francis: os "frouxos venceram", não vamos poder pensar, dizer, criar, intuir mais nada que não esteja na cartilha dos autoritários. Sob o signo dos ofendidos, cala-se a alma, o humor e a inteligência. Antes era em nome do racismo nazista, do novo homem comunista, das heresias, agora é em nome dos "ofendidos".

Este meu amigo, normalmente, é uma pessoa doce, mas às vezes perde as estribeiras. Outro dia, acabou indo com a esposa e as duas filhas, num domingão quente pra burro, ver a Bienal no Ibirapuera.

Parou o carro longe (claro, trânsito infernal, sem lugar para parar o carro, e chamam isso de lazer...) e teve que fazer as três meninas andarem até o pavilhão sob o Sol, obviamente o culpando por tudo.

A mulher sempre culpa o marido por tudo de forma tranquila e sem pudores. Estas queixas vêm seguidas de beijos, sorrisos e sexo, quando passa a irritação, que numa mulher passa na mesma velocidade da luz em que ela cai no tédio.

Aprendeu uma dura lição: Ibirapuera domingo é para iniciantes (a menos que chova, aí é legal...), pior quando tem Bienal porque aí se junta o povo que quer ter saúde com o povo que quer fingir que gosta de arte. O mundo está dividido em dois grupos: os que gostam de arte e os que gostariam de gostar de arte.

O mesmo vale para jazz, blues e música erudita.

Outro dia ele foi fazer aquele negócio chamado "controlar", mais uma taxa para pagarmos. Esta é "verde". O burocrata técnico recusou seu carro por um detalhe qualquer. Daí, ele teve que começar tudo de novo. A vida, passo a passo, se torna uma teia infernal de controles.

O melhor é não ter carro, não dar emprego a ninguém, não casar, não ter filhos, enfim, negar investimento a um mundo controlado pelos "babacas do bem".

Mas não é disso que quero falar, mas sim da irritação do meu amigo carcamano com o novo edital racista do Ministério da Cultura. Todo mundo ouviu falar do edital para afrodescendentes (não ouso usar qualquer outra expressão por medo de ter minha vida destruída pelos "amantes da liberdade").

Enquanto esses tecnocratas ideológicos não conseguirem criar de fato racismo à la Ku Klux Klan no Brasil, não sossegarão.

A indústria do assédio jurídico cresce e os amantes da liberdade que tanto criticam a maldita ditadura e pedem uma Comissão da Verdade só para um dos lados, gozam com as novas formas de autoritarismo que empesteiam nossas vidas.

O apartheid do bem é a nova invenção do governo. Tanta gente morreu na Segunda Guerra Mundial, tanta gente morreu na mãos dos comunistas, e o fascismo venceu assim como um enxame de abelhas vence: começa devagar, você achando que está lutando apenas contra uma, mas, zumbindo, elas invadem sua casa e sua vida.

No mesmo processo, querem proibir Monteiro Lobato. Adianto que não gosto da obra de Monteiro Lobato, nem ela me marcou na infância. Preferia as aventuras de Abraão, Moisés e Deus. Mas meu gosto pouco importa.

Por que não fazem esses fascistas assistirem à famosa cena em que nazistas queimavam livros na Alemanha de Hitler? O que esses tarados não entendem é que os nazistas também achavam que tinham um bom motivo e que aqueles livros degeneravam as novas gerações. Alguma semelhança?

E ainda, para piorar, quem paga essa farra fascista somos nós. O governo e sua máquina imoral de arrecadação de impostos, este sócio parasita de cada pessoa que trabalha no país, alimenta tecnocratas aos montes deixando que inventem medidas discriminatórias dizendo que são do bem.

O argumento de que somos todos culpados pela escravidão é falso. Não conheço, no meu círculo de pessoas, ninguém que tenha tido escravos ou ganhado dinheiro com a escravidão ou coisa parecida.

Melhor seria este governo fascista criar uma educação decente de uma vez por todas para acabar com a pobreza cultural do país em vez de ressuscitar medidas racistas.

Luiz Felipe Pondé



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Monday, July 23, 2012

Nêmesis

Luiz Felipe Pondé



Fosse eu religioso, minha espiritualidade seria a trágica dos gregos. Eles tinham razão

Nêmesis era a deusa grega da vingança. Ela tinha especial prazer em torturar heróis que caíam em "hybris" (desmedida) e pensavam ser outra coisa que mortais sob o domínio dos deuses e das moiras, senhoras divinas quase cegas que teciam o destino de todos.

Fosse eu religioso, minha espiritualidade seria a trágica dos gregos, apesar da grandiosa beleza do sistema bíblico. Não que eu ache "legal" o politeísmo, mas porque eu acho que a visão de mundo dos trágicos é a melhor. A piedade trágica, aquela despertada pela empatia entre nós e os infelizes heróis do teatro grego, é que levou Nelson Rodrigues a dizer que devíamos assistir ao teatro de joelhos.

A acusação feita aos trágicos é que eles negam o sentido último da vida, porque os deuses gregos eram uns loucos apaixonados e sem projeto moral para o mundo (o destino é sempre cego). Isso é verdade. O Deus de Israel, que para os cristãos encarnou no judeu Jesus, tem um projeto moral para o mundo, mesmo que não saibamos ao certo qual é. E isso nos acalma.

A tragédia marcou a cultura de forma profunda, os exemplos são inúmeros: Shakespeare, Gracian, Schopenhauer, Nietzsche, Camus, Cioran, Nelson Rodrigues, Philip Roth.

É desse último que quero falar hoje. Especificamente de seu livro mais recente, "Nêmesis", a história do jovem professor de educação física Bucky Cantor atravessando o grande surto de pólio nos EUA no verão de 1944.

Os heróis de Roth sempre são esmagados entre a vida pessoal, os vínculos afetivos e ideias, e grandes processos históricos ou "cósmicos" que têm um efeito aleatório na vida deles -e sempre destrutivo.

Como exemplos históricos, vemos a Guerra da Coreia, o macarthismo versus comunismo nos anos 1950 nos EUA, a contracultura, a canalhice do politicamente correto nas universidades americanas. Como exemplo cósmico, o envelhecimento, a perda das funções sexuais ou de memória, as pragas (como a pólio em "Nêmesis").

No caso desse romance, a praga da pólio ocupa o lugar de pragas atávicas que sempre significaram para nossos ancestrais a fúria dos deuses. E é contra Deus que Cantor se revoltará.

Mas Roth é um grande escritor, e a revolta do jovem Cantor será teologicamente sofisticada, e não mero ateísmo militante, porque o ateísmo militante é sempre infantil.

O cruzamento entre as intenções pessoais e o destino, histórico ou cósmico, dá o efeito de esmagamento e negação de projeto moral, na medida em que os heróis de Roth não conseguem discernir qualquer sentido que não seja a cegueira terrível do acaso ou o "terror da contingência", tal como diz o narrador de "Nêmesis".

A expressão "terror da contingência" é comum nos textos do historiador das religiões Mircea Eliade para descrever o que nos moveria ao desejo religioso de um sentido maior. Tememos o acaso porque ele nega qualquer providência sábia por trás das coisas. O acaso é cego.

Para Cantor, Deus é um "demiurgo". Essa expressão era comum em alguns textos heréticos do início do cristianismo (textos gnósticos) e significava que Deus é mal. E se Deus for mal, não há qualquer esperança.

Mas o narrador do romance pensa diferente. Sua hipótese sobre a vida e as decisões que Cantor tomará é mais psicanalítica (ele sofreria de uma "neurose de responsabilidade"), mas nem por isso menos teológica. Para o narrador, Cantor é excessivo em julgar a si mesmo responsável pela desgraça que destrói seus alunos. E por isso sofrerá, porque nenhum homem pode se julgar senhor do destino, já que esse não nos pertence.

Como a deusa em questão é a da vingança, Nêmesis, a desmedida de Cantor em se julgar responsável pelo destino de seus alunos será vista de outra forma: Cantor se julga um justo e um dedicado professor e, por isso, pagará um preço alto pela autoimagem de homem reto. Aí está sua desmedida.

Cantor é o Jó de Roth (o judeu Levov, protagonista de "Pastoral Americana", é outro Jó de Roth): Cantor e Jó se julgam justos. Mas Cantor é um Jó que não encontra, ao final, a piedade de Deus, mas a vingança de uma deusa cega à misericórdia.

Wednesday, July 11, 2012

Vizinhos


ANNA VERONICA MAUTNER



É melhor falar sobre a minha goiabeira que não deu flor do que arriscar o bem viver por uma fofoca

Parece que é "chique" a pessoa dizer que mora há anos num lugar e não conhece nenhum vizinho. Que triste, digo eu.

Há 50 anos, mudei de casa e minha filha era pequena. Minha mãe se deu ao trabalho de dar a volta no quarteirão batendo de porta em porta para ver se tinha criança da idade da Gabi. Eu que não ia viver em um lugar onde minha filha ficasse isolada...

Na minha infância, o muro entre as casas não afastava, era um ponto de encontro. A calçada da frente era para brincar de amarelinha, jogar pedrinha e trocar novidades.

Relações de vizinhança eram alimento da vida. Ninguém tinha medo de ser invadido, o código de conduta era interiorizado por todos.

Conversar era conversar, mas assunto algum invadia o horário das refeições. Isso não era dito, era da natureza das relações, que precisavam ser protegidas, pois vizinhos eram vizinhos por muito tempo. Não tinha isso de ficar mudando de casa. A vizinhança era uma grande família.

Na década de 50, quando apareceu em nossa vida o aparelho de TV, algumas coisas começaram a mudar. Surgiu o televizinho, que também não aparecia em horário de refeição. O horário da família era sagrado. Logo a TV conseguiu vaga na vida de quase todos, tirando das calçadas as crianças e os adultos que papeavam nas portas.

Daí a se orgulhar de não conhecer ninguém é quase um salto para um vazio afetivo.

Receitas, conselhos e palpites atravessavam as fronteiras das casas, antigamente. Conheciam-se as fraquezas dos filhos, a infidelidade de maridos... Mas esses assuntos não eram verbalizados.

A intimidade era respeitada, pois, quando isso não acontece, as relações se ressentem. É sempre melhor falar sobre a minha goiabeira que ainda não deu flor quando a sua já deu do que arriscar o bem viver por uma fofoca.

Esse código de conduta vinha testado e era levado a sério. As relações de vizinhança mantinham-se por vidas. Pouco se perguntava, quase nada se palpitava e o que se percebia ficava com a gente: não era falado nem na frente nem pelas costas.

Hoje, isso virou fumaça.

Relações entre vizinhos são efêmeras como os endereços, neste mundo onde predomina a mobilidade. Mudamos de bairro, de país, como se nada houvera. Se é bom, se é ruim, não sei. Tudo apenas está diferente.

Lembrar do passado não é obrigatoriamente querê-lo de volta. A memória nem sempre serve ao saudosismo. No caso da vizinhança, ela foi importante no tempo em que comunicações interpessoais tinham limites estreitos. Não havia internet, Skype ou telefone celular -o fixo era raro e caro. O telegrama era o último recurso para comunicar urgência e emergência.

Um rojão para Drummond

Marcelo Coelho



Quando tudo se recolhe à essência mais quieta, Drummond pode recolher-se dentro de si mesmo

Este ano está repleto de homenagens a Carlos Drummond de Andrade, desde encontros na Flip à publicação de seus inéditos da juventude. Vi algumas reedições de seus livros também, feitas pela Cosac Naify, com primoroso trabalho de notas e -como sempre- aquela antipática mania da capa dura que é marca da editora.

Acabei tendo de participar de uma mesa-redonda sobre a prosa de Drummond. Como tinha feito um texto sobre seu livro de crônicas de 1962, "A Bolsa & A Vida", não achei que seria difícil preparar algo meio em cima da hora.

Mas é tempo de férias, e eu tinha de deixar muita coisa pronta antes de viajar. A data da minha participação se aproximava, foi chegando, e nada de eu cuidar do assunto.

Sobrava apenas uma noite; meu sono era grande, a vontade de enrolar, maior ainda, e pensei em dar uma dormidinha antes de começar.

Não contava com o que estava acontecendo lá fora. Era o jogo do Corinthians contra o Boca Juniors. Os fogos e a gritaria de comemoração não deixavam ninguém dormir, e nem por isso me deram vontade de me dedicar à tarefa prometida.

"Tudo bem", pensei. "Daqui a pouco eles se cansam." De fato, depois de uma hora ou duas, os rojões foram rareando. Às vezes, alguém ainda se lembrava da vitória, e berrava como se a conquista da Libertadores tivesse acabado de acontecer.

O silêncio foi vencendo, entretanto, e uma noite igual por fim se impôs, em São Paulo e em Buenos Aires. Dormi sem preparar nem sombra de palestra; acordei de madrugada, e não havia mais coisa nenhuma a ser ouvida.

Conto tudo isso porque, na minha opinião, essa chegada do silêncio e da noite constituem um momento bem drummondiano.

Vale lembrar, para fins de comparação, um famoso poema de Manuel Bandeira, intitulado "Profundamente".

O poeta se lembra de uma festa de São João de quando ele era criança; havia fogos e cantorias. Acorda no meio da noite, tudo já terminou, e quem participava da festa agora estava dormindo, "dormindo profundamente".

Muitos anos depois, no momento em que se recorda dessa cena, o poeta repete a constatação. "Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo/ Minha avó/ Meu avô/ Totônio Rodrigues/ Tomásia/ Rosa/ Onde estão todos eles?"

Bandeira responde: "Estão todos dormindo/ Estão todos deitados/ Dormindo/ Profundamente".

O silêncio depois da festa evoca, no poema de Bandeira, sensações de perda, de saudade. A noite traz algo de irrecuperável; é o fim.

Minha impressão é que, com Carlos Drummond de Andrade, acontece o contrário. O silêncio é bem-vindo, e a noite é o verdadeiro começo.

Quando tudo se recolhe à sua essência mais quieta, Drummond pode finalmente recolher-se também dentro de si mesmo, e é então que tudo nasce.

Talvez a melhor crônica de "A Bolsa & A Vida" seja a que se intitula "Ficar em Casa". É Quarta-feira de Cinzas; aos poucos, o tumulto carnavalesco se reduz a um "grito trêmulo, trazido e levado pelo vento". Drummond está sozinho em casa e se beneficia de uma "inexistência provisória do mundo".

Aprecia "o instante em que a agulha fere o disco sem despertar ainda qualquer som". Descobre, "sem mescalina, as cores que a cor esconde; os timbres entrelaçados no ruído".

Sente a casa "como um todo e como partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, à nossa revelia, contra o nosso desdém".

Não há nada, nesse texto, daquele espírito de "croniquinha" amigável que, muitas vezes, estraga a prosa de Drummond. "Ficar em Casa" lembra algumas passagens de seus melhores poemas.

Penso no "Copo d'Água no Sereno", em que, posto no peitoril da janela, o copo "convoca os eflúvios da noite". O "frio nevoso da serra", "os perfumes brandos/ do mato dormindo" e "o gosto delicado da brisa" se juntam, "e pousam na água".

Em "Indicações", Drummond menciona "certo olhar, mais sério, não ardente,/ que pousas nas coisas, e elas compreendem".

De "mala pronta" e "corpo desprendido" ("Conclusão"), o poeta, que já dissera a si mesmo "fique quieto no seu canto", constata que resta apenas "a alegria de estar só, e mudo".

É desse silêncio que nasce a poesia de Drummond; merece ser comemorada, com os rojões que ainda tenhamos à disposição.




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Monday, July 09, 2012

Querido príncipe





CARLITO AZEVEDO

QUERIDO PRÍNCIPE,

às vezes sua ausência é tão grande por aqui que me agarro a ela como uma lebre a uma serpente. Lembro de você mostrando as fotografias do júbilo e do desespero, oferecendo a rosa a Stalingrado, um suco de abacaxi ao minotauro, a carótida ao vampiro, estudando os rios que fluem contra o oceano, voltam ao fio d'água, explicam-se pelo arrependimento, trabalhando sem alegria para um mundo caduco, observando o voo da mosca. E sempre descobrindo o amor, inventando o amor, renegando o amor, conspirando: não me venham falar que, à noite, deitado na areia da praia, olhando a superfície negra salpicada de pontos luminosos, alguém era melhor do que você no comando da misteriosa navegação.

Tão existencialista isso de você olhar para baixo quando ri, e tão provocador e belo, e nobremente misterioso, sweet prince. Você, sempre acreditando que de tudo fica um pouco, até no chocalhar de chaves no bolso burocrata fica um pouco do desabar das ondas sobre os calhaus da sua região preferida no mundo, onde o deserto limita com o mar. Sempre se perguntando por que acordar com palavras o chinês deitado no campo, e quais as dez coisas que não podem faltar no sono de um chinês deitado no campo: a revolução? a súbita iluminação da mosca em pleno voo? a vertigem do miserável que nem sabe que ronda a boca de um vulcão?

Está vendo como, tão inutilmente, tão amargamente, a lebre, escama a escama, pensa que vai se agarrando à serpente, virando serpente, proferindo oráculos?

Mas não, não é um poema para lembrar de você. Aí está você, aqui estou eu. Aí estão as letras e as runas. Tantos mortos em nossas vidas. Mas seguimos adiante, encurralando sonhos com café, entre o giro da galáxia e o lixo da cozinha, e a mosca, não vamos nos esquecer da mosca. A mosca foi nosso duende. Nossa real Penélope foi fulana. Você via o inimigo maduro a cada manhã ir se formando no espelho de onde deserta a mocidade, Jean Cocteau dizia que os espelhos deveriam refletir um pouco mais antes de nos devolverem a nossa face, e meu riso, abafado, se o risse, ofertaria ao nada, e nele me sepultaria para sempre e um dia.

Anoitece e a serpente diz que a lebre nem chegou perto de alcançá-la, e apenas sonha em sua vermelha toca subtropical, ardendo em febre. A serpente não sente a pelúcia e a ferrugem das patas tateando já seu código genético, suas ondulações, o bater do seu coração. Antes isso do que confessar ao atirador de elite que você foi o homem da minha vida, príncipe. E que eu sempre tive medo de que você me esmagasse com seu amor, com seu desprezo, delta do Paraná, cataratas do Niágara, e, uma vez mais, moscas.

Príncipe, anotei todos os conselhos que você deixou na caixa de papelão da pizza, de que os camaradas comeram mais da metade. Menos aquele sobre só falar de amor sob um vento de cobre e estanho. E é que, como você, só sei falar de amor o tempo todo: amor, amor, amor, amor, no seu dialeto de desordem e precipício, sua fala tartamuda, sua música eletrônica, suas mãos erguidas que não logram nem desistem de fazer o éter tremer de sua pura vertigem vertical. Por isso também eu deitei-me à noite em chão qualquer e fiquei sentindo, sob o corpo, o ondular da bola de barro solta no ar e no alto o séquito de constelações extintas e prometi que o amor nunca mais será comum, banal, nunca mais será qualquer coisa fora da felicidade extraordinária, flor nascida no banco de trás do carro, silêncio de coquetel molotov um segundo antes de explodir contra a luz, Morro da Conceição, Morro do Livramento, Gamboa, Juramento, Tuiuti, Mangueira ou qualquer outro vendaval. Você diz que as mulheres que nunca nos olharam levaram consigo gestos de paixão, de morte e êxtase. Na madrugada da Praça XV, a menina, zureta de pedra, orgasmo de pedra, palavras de pedra, se despega, se despedra da escuridão para me oferecer um ferro de passar novo por cinco reais. Pupilas de fogo, mosca no nariz, ela me sussurra, como oratório sobre faixa mixada do Dj Enigma, que sua presença, milagre de segundo banho no mesmo rio de lama, é a única lebre. E se foi, levando gestos de agonia e limbo, pequena Electra dos muros pichados.

De todo modo, como os cidadãos de Argos, que se lamentavam de haver entregue à guerra de Troia a melhor flor de sua juventude só para receber, dez anos depois, em vez de homens feitos, cinzas numa urna desolada tão fácil de manusear, sinto que a poesia me sai cada vez mais cinza, e nem por isso diminuo a hecatombe de todos os meus momentos dedicados a ela: poesia. A ela, que também te matou, cegou João Cabral, tragou Dylan Thomas 18 uísques adentro, naufragou Rimbaud no charco abissínio, clamou por Ana Cristina do fundo do abismo, Lorca fuzilado de madrugada, assistindo ao primeiro clarão do sol surgir sobre as cabeças do pelotão, última visão do condenado, esgazeou Silvya, Sexton, Sulamita, fez um bailarino de sífilis dançar na pupila verdinegra de Baudelaire, e quantos mais. Carlos, sobreviver aos filhos, aos amigos, ao amor, tudo explica e repele explicação, ninguém morre velho o bastante ou jovem o bastante e há de haver uma região de todas as coisas, e ali nos reuniremos para tramar as felicidades mais impossíveis, sempre as mais realizáveis. O poema é o amor realizado do desejo que permaneceu desejo e isso já deixa o coração pleno de verdade, de furor e mistério. Cara, eu queria apenas dar notícias do coração pleno, do desejo extraordinário, da saudade de você. Viu o que você fez com a imaginação dos poetas cegos de Catamarca? escrevemos post-mortem. Vivemos post-mortem.

Saiba que sempre penso em você, pelo menos sempre que o meu coração cresce assim dez, vinte, trinta metros e explode.


Saturday, July 07, 2012

Quando o dia chegou

Ruy Castro

RIO DE JANEIRO - Para quem gosta de cinema é um dos melhores sebos do Rio. Aliás, leva o nome de um filme de Chaplin. E, como todo sebo do gênero, tem também discos. Visitei-o outro dia e, ao espiar casualmente os CDs, a surpresa. Um estoque de primeiríssima -a maioria, importados, e muitos, lacrados, virgens, em edições de luxo e superluxo.

Lá estava o fino do jazz de todos os tempos. Duke Ellington, Count Basie, Benny Goodman. Os gigantes do sax-tenor, Lester Young, Sonny Rollins, John Coltrane. CDs duplos, triplos e quádruplos de Charles Mingus, Miles Davis, Modern Jazz Quartet. A caixa do trompetista Clifford Brown, na Mercury, com dez CDs. Em outra bancada, os clássicos. Estojos e estojos de Mozart, Beethoven, Wagner. Ou de Ravel, Mahler, Stravinsky. Os pianistas definitivos, as orquestras fundamentais, os solistas desse ou daquele instrumento.

Fui ao balcão. Perguntei se aquele acervo era de uma loja de CDs que tivera a infelicidade de falir. O lojista respondeu que não, que tudo viera de um colecionador. Não me disse o nome do homem nem lhe perguntei, mas me deu a ficha.

Tratava-se de um cinquentão, profissional bem-sucedido e comprador compulsivo. Ao entrar numa loja no Rio, em Nova York ou Paris, saía com dezenas, centenas de discos. Muitos mais do que a sua capacidade de escutá-los. Mas tudo bem: estava se estocando para quando se aposentasse. Aí, sim, mandaria vir os chinelos, relaxaria e ouviria a grande música.

Há um ano, a aposentadoria chegou. Nas primeiras semanas, ele cumpriu seu projeto e começou a tocar os discos. Mas, aos poucos, desconfiou de que bom mesmo era sair à rua, andar à toa, namorar, tomar um chope, desfrutar a praia, os amigos, o Rio. Finalmente, convenceu-se: aposentadoria era isso. Para evitar recaídas, chamou o sebo e vendeu tudo de uma vez -5.000 CDs.



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Thursday, June 28, 2012

Contardo Calligaris

  Sorria!

Pesquisas mostram que valorizar a felicidade produz insatisfação e mesmo depressão Na frente da câmara fotográfica, ninguém precisa nos dizer "Sorria!"; espontaneamente, simulamos grandes alegrias, sorrindo de boca aberta. Em regra, hoje, os retratos são propaganda de pasta de dentes -se você não acredita, passeie pelo Facebook, onde muitos compartilham seus álbuns, rivalizando para ver quem parece melhor aproveitar a vida. O hábito de sorrir nos retratos é muito recente. Angus Trumble, autor de "A Brief History of the Smile" (uma breve história do sorriso, Basic Books), assinala que esse costume não poderia ter se formado antes que os dentistas tornassem nossos dentes apresentáveis. Além disso, os retratos pintados pediam poses longas e repetidas, para as quais era mais fácil adotar uma expressão "natural". O mesmo vale para os daguerreótipos e as primeiras fotos: os tempos de exposição eram longos demais. Já pensou manter um sorriso por minutos? Outra explicação é que o retrato, até a terceira década do século 20, era uma ocasião rara e, por isso, um pouco solene. Mas resta que nossos antepassados recentes, na hora de serem imortalizados, queriam deixar à posteridade uma imagem de seriedade e compostura; enquanto nós, na mesma hora, sentimos a necessidade de sorrir -e nada do sorriso enigmático do Buda ou de Mona Lisa: sorrimos escancaradamente. Certo, o hábito de sorrir na foto se estabeleceu quando as câmaras fotográficas portáteis banalizaram o retrato. Mas é duvidoso que nossos sorrisos tenham sido inventados para essas câmaras. É mais provável que as câmaras tenham surgido para satisfazer a dupla necessidade de registrar (e mostrar aos outros) nossa suposta "felicidade" em duas circunstâncias que eram novas ou quase: a vida da família nuclear e o tempo de férias. De fato, o álbum de fotos das crianças e o das férias são os grandes repertórios do sorriso. No primeiro, ao risco de parecerem idiotas de tanto sorrir, as crianças devem mostrar a nós e ao mundo que elas preenchem sua missão: a de realizar (ou parecer realizar) nossos sonhos frustrados de felicidade. Nas fotos das férias, trata-se de provar que nós também (além das crianças) sabemos ser "felizes". Em suma, estampado na cara das crianças ou na nossa, o sorriso é, hoje, o grande sinal exterior da capacidade de aproveitar a vida. É ele que deveria nos valer a admiração (e a inveja) dos outros. De uma longa época em que nossa maneira e talvez nossa capacidade de enfrentar a vida eram resumidas por uma espécie de seriedade intensa, passamos a uma época em que saber viver coincidiria com saber sorrir e rir. Nessa passagem, não há só uma mudança de expressão: o passado parece valorizar uma atenção focada e reflexiva, enquanto nós parecemos valorizar a diversão. Ou seja, no passado, saber viver era focar na vida; hoje, saber viver é se distrair dela. Ao longo do século 19, antes que o sorriso deturpasse os retratos, a "felicidade" e a alegria excessivas eram, aliás, sinais de que o retratado estava dilapidando seu tempo, incapaz de encarar a complexidade e a finitude da vida. Alguém dirá que tudo isso seria uma nostalgia sem relevância, se, valorizando o sorriso e o riso, conseguíssemos tornar a dita felicidade prioritária em nossas vidas. Se o bom humor da diversão afastasse as dores do dia a dia, quem se queixaria disso? Pois é, acabo de ler uma pesquisa de Iris Mauss e outros, "Can Seeking Happiness Make People Happy? Paradoxical Effects of Valuing Happiness", em Emotion on-line, em abril de 2011 (http://migre.me/9CT8e). Em tese, a valorização ajuda a alcançar o que é valorizado -por exemplo, se valorizo as boas notas, estudo mais etc. Mas eis que duas experiências complementares mostram que, no caso da felicidade (mesmo que ninguém saiba o que ela é exatamente -ou talvez por isso), acontece o contrário: valorizar a felicidade produz insatisfação e mesmo depressão. De que se trata? Decepção? Sentimento de inadequação? Um pouco disso tudo e, mais radicalmente, trata-se da sensação de que a gente não tem competência para viver -apenas para se divertir ou, pior ainda, para fazer de conta. Como chegamos a isso? Pouco tempo atrás, na minha frente, uma mãe conversava pelo telefone com o filho (que a preocupa um pouco pelo excesso de atividade e pela dispersão). O menino estava passando um dia agitado, brincando com amigos; a mãe quis saber se estava tudo bem e perguntou: "Filho, está se divertindo bem?". ccalligari@uol.com.br @ccalligaris AMANHÃ NA ILUSTRADA: Carlos Heitor Cony Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Sunday, April 22, 2012

A linguagem secreta que há nos gestos dos maestros DANIEL J. WAKIN DO "NEW YORK TIMES" Braços esculpem o ar. Uma mão se fecha. Um dedo indicador se projeta. O torso oscila para frente e para trás. E, não se sabe como, música jorra em resposta a essa dança misteriosa no pódio, música coordenada com precisão e emocionalmente expressiva. O público dos concertos sintoniza os ouvidos na orquestra e invariavelmente fixa os olhos no regente. Mas mesmo o ouvinte mais experiente pode não ter consciência da conexão sutil e profunda entre a sinfonia de movimentos do maestro e a música que emana dos instrumentistas. Assim, num esforço para compreender o que acontece, entrevistamos sete regentes que passaram por Nova York em temporadas recentes, procurando decompor os movimentos em partes do corpo mão esquerda, mão direita, rosto, olhos, pulmões e, o mais indefinível, cérebro. The New York Times Representação gráfica feita na Universidade de Nova York registra movimentos do maestro Alan Gilbert O objetivo fundamental do regente é infundir vida a uma partitura escrita, através do estudo, de sua personalidade e sua formação musical. Mas ele demonstra o sentido da música por meio de seus movimentos corporais. Imagine-se tentando falar com alguém em uma língua totalmente desconhecida por você. Se quisesse expressar algo a essa pessoa sem recorrer à linguagem, como você faria?, disse o regente britânico Harry Bicket. É isso o que fazemos, na realidade. Cada regente usa um estilo singular, mas todos querem arrancar dos músicos a performance mais grandiosa possível. Portanto, nossa decomposição do gestual traz algumas generalizações inerentes. É preciso lembrar que a arte de reger não se limita a gestos semafóricos. É uma dança em compasso de dois tempos, envolvendo corpo e alma, gestos físicos e personalidade musical. Um regente com o maior domínio técnico do mundo pode produzir performances insossas. Outro, que faça gestos aparentemente incompreensíveis, é capaz de gerar transcendência. Você pode fazer tudo certinho e não criar absolutamente nada interessante, comentou James Conlon, diretor musical da Los Angeles Opera. E pode ser enigmático, mas produzir resultados. MÃO DIREITA Tradicionalmente (pelo menos para os destros), a mão direita segura a batuta e marca o pulso. Ela controla o tempo e indica quantas batidas ocorrem em um compasso. A batuta geralmente assinala o início de um compasso com um movimento para baixo (o downbeat). Um movimento para cima (upbeat) é a preparação para o downbeat. Os manuais de regência dizem que o upbeat e o downbeat devem levar o mesmo tempo e que o intervalo deve ser igual ao comprimento da batida. O upbeat é a preparação para qualquer evento, disse Alan Gilbert, diretor musical da Filarmônica de Nova York. É crucial definir o tempo certo para uma frase musical. Ninguém menos que o compositor Richard Wagner (1813-83), que também foi um dos primeiros maestros modernos, disse que o dever do regente está contido em sua capacidade de sempre indicar o tempo correto. Mas um regente não é um metrônomo de casaca. Um dos grandes equívocos em relação ao que os regentes fazem é a ideia de que eles ficam lá, marcando o tempo, disse Bicket. A maioria das orquestras não precisa de ninguém marcando o tempo. A batuta também pode moldar o som. A natureza do downbeat abrupta, delicada transmite à orquestra que tipo de caráter deve conferir ao som que vai produzir. A batuta pode suavizar fraseados agitados, realizando o movimento de modo mais abrangente. Um gesto mais horizontal pode pedir uma qualidade mais lírica, disse James DePreist, ex-diretor de estudos orquestrais e de regência da Juilliard School. Um gesto para baixo que imite um movimento de arco de violino, disse Bicket, pode colorir o ataque. De acordo com Gilbert, mesmo quando marca o tempo em notas longas, o regente deve procurar comunicar a qualidade sonora que busca, por meio do movimento da batuta. Predecessor de DePreist em Juilliard, o professor de regência Jean Morel, ensinava que a mão e o pulso direito devem ser totalmente autossuficientes, segundo James Conlon, um de seus alunos; devem marcar o tempo, a expressão, a articulação e o caráter para que você possa então aplicar a mão esquerda e reter conforme deseja. Xian Zhang, que é mestre em esculpir uma linha musical com sua batuta, demonstrou isso quando ensaiava a Sinfonia Concertante para Violino e Viola de Mozart com uma orquestra de estudantes na Juilliard School. O movimento de sua batuta correspondia estreitamente ao caráter da música, delicado nas passagens suaves, pequeno para acompanhar as cordas, maior para uma melodia de trompa e oboé. Os gestos de seus braços ficavam amplos nas frases vigorosas. Em alguns momentos, os gestos de elevação da batuta pareciam literalmente arrancar os sons. Alguns regentes preferem não usar a batuta em alguns momentos ou o tempo todo. Yannick Nézet-Séguin, que a partir de setembro será o diretor musical da Orquestra da Filadélfia, é um deles. Sua formação se deu principalmente em corais, nos quais raramente se emprega a batuta. As mãos estão ali para descrever um certo espaço do som e moldar aquele material imaginário, disse Nézet-Séguin. Aquele corpo imaginário de som está em frente ao maestro, entre o peito e as mãos, ele explicou. É mais fácil quando não há nada em uma mão. Ele começou a usar batuta quando começou a atuar como regente convidado de grandes orquestras, que estavam acostumadas com isso. Valery Gergiev é outro maestro que frequentemente não usa batuta. Sua técnica foi evidenciada num ensaio da London Symphony Orchestra, no Avery Fisher Hall, preparando uma apresentação da Sinfonia nº 3 de Mahler. Gergiev ficou sentado numa cadeira, de modo geral imóvel. Quase toda a ação vinha de sua mão direita, que em muitos momentos estava plana, com o polegar paralelo, como as mandíbulas de um jacaré. Sua mão esquerda fazia pouco, mas era usada ocasionalmente para apontar e encerrar acordes. Gergiev não marca o tempo com sua mão direita, exatamente, mas mexe os dedos no ritmo da música. Seus dedos geralmente estavam esticados, com as palmas para baixo, o pulso voltado para cima na altura de seu rosto. Às vezes ele formava um círculo de ok com o polegar e o indicador e mexia os outros três dedos. À medida que o tempo acelerava, seu pulso ficava mais mole. Em entrevista, Gergiev sugeriu que o balançar de sua mão, que descreveu como sendo um hábito, pode ter derivado do fato de ele tocar piano. Sou pianista, e às vezes eu toco a textura, explicou. Ele disse ainda que uma batuta pode se contrapor a um som de canto. O mais difícil na regência é fazer a orquestra cantar, e é aqui que as duas mãos precisam basicamente ajudar os instrumentistas de sopros ou cordas a cantar. Gergiev disse que movimentar uma batuta no ar é como praticar esgrima: Não acho que isso ajude o som. MÃO ESQUERDA Tendo entregado as incumbências rítmicas à mão direita, a mão esquerda tem finalidade bem mais maleável. Para explicar em termos grosseiros, se a mão direita esboça os contornos gerais da pintura, a esquerda preenche as cores e texturas. A mão direita cria a casca de chocolate do bombom, e a mão esquerda molda o recheio. Sua principal utilidade prática é dar deixas aos naipes ou músicos individuais sobre quando entrar e quando cortar, o que faz muitas vezes com dedo indicador apontado. Se a mão esquerda se fecha ou o polegar e os dedos se fecham, isso pode fazer a frase musical encerrar-se suavemente. Um movimento rápido para baixo indica um corte abrupto no som. James DePreist descreveu os gestos de mão esquerda às vezes inexplicáveis de outros regentes: William Steinberg costumava esfregar os dedos, como no gesto usado universalmente como símbolo de dinheiro. Antal Dorati fazia movimentos de empurrar abruptamente, como se estivesse fazendo uma bola de som subir e ficar boiando no ar. Eugene Ormandy muitas vezes mantinha a mão esquerda segurando a lapela da casaca, enquanto a Philadelphia Orchestra produzia cascatas de sons, observou DePreist. Nézet-Séguin é um dos regentes mais expressivos fisicamente, em razão de sua baixa estatura, disse ele. Sua mão esquerda se movimenta constantemente. Ele contou que procura mantê-la em posição lateral em relação à orquestra, para que sua região palmar anterior não seja vista pelos músicos como uma barreira simbólica. Em outro ensaio na Juilliard, Nézet-Séguin indicou entradas fazendo um círculo de ok ou abrindo seu dedo indicador, para assinalar um ataque mais leve. Um dedo indicador que se eleva com cada batida indicava mais volume. Nos acordes de alto volume, ele colocava a mão em forma de concha voltada para cima. Uma mão em forma de concha voltada para baixo pedia uma linha sonora sustentada. Acordes marciais retumbantes eram assinalados por uma mão em punho. A mão plana, com a palma para baixo, pedia um som sustentado e suave. Entradas repetidas eram assinaladas por movimentos como tiros de revólver. Gilbert observa que não é preciso dizer a músicos profissionais em que momento de um compasso eles devem entrar. Ele frequentemente se prepara para dar a deixa a um músico, olhando para ele antes da hora, para criar uma conexão com ele e intensificar a energia. O objetivo de uma deixa é fazer com que as pessoas entrem na hora certa e do modo certo, dentro do fluxo, disse Gilbert. ROSTO Depois dos braços, a parte mais importante do arsenal do maestro é seu rosto. Sinto como se meu rosto cantasse com a música, disse Nézet-Séguin. Comunicar-se com os músicos por um olhar pode tranquilizá-los e encorajá-los. Por outro lado, alguns regentes, como Fritz Reiner, não mudam de expressão, mas suas gravações são completamente eletrizantes, afirmou Bicket. Manter-se inexpressivo também pode beneficiar a moral dos músicos. Demonstrar sua frustração ou seu desagrado na expressão facial é algo que não ajuda ninguém, disse Bicket. Mas sobrancelhas erguidas podem ser maneiras sutis de transmitir insatisfação. O rosto se torna ainda mais importante quando as mãos estão ocupadas com outra coisa, como, por exemplo, quando um regente toca um teclado simultaneamente, prática comum de especialistas em música antiga, como Bicket. Os próprios olhos são o mais importante de tudo quando se rege, disse Zhang. Eles devem ser o que mais revela a intenção musical. Os olhos são as janelas do coração. Eles mostram o que você sente em relação à música. Um semicerrar dos olhos, por exemplo, pode conferir à música uma qualidade distante, disse DePreist. Um truque para criar um bom som orquestral é olhar para os músicos nos fundos da seção de cordas. Com isso, você faz com que eles sejam incluídos no jogo, disse Nézet-Séguin. Gergiev utiliza a mesma técnica com os músicos sentados ao fundo. O fato de olhar para ele significa que estou interessado nele. Se estou interessado nele, ele está interessado em mim. Certo? Procuro fazer tudo a partir da expressão e do contato visual. Às vezes é igualmente importante não olhar para os músicos, especialmente durante solos importantes. Essa é uma parte grande dos segredos de regência que não costumam ser verbalizados, disse Zhang. Isso pode evitar que o músico ceda ao nervosismo. E existe um ou outro caso raro do maestro que rege com os olhos fechados e produz grandes performances, como muitas vezes fez Herbert von Karajan. Leonard Bernstein foi um dos regentes mais expressivos fisicamente dos tempos modernos, fato que, às vezes, atraía o desprezo dos críticos. Mas também era capaz de reger com as mais sutis expressões faciais, conforme foi evidenciado por um vídeo clássico no YouTube em que suas sobrancelhas dançam, seus lábios se comprimem e seus olhos se arregalam. COSTAS Nézet-Séguin disse que tomou consciência da postura das costas ao assistir a videoteipes de Karajan. Na época, Nézet-Séguin trabalhava com Carlo Maria Giulini. A diferença principal entre o som de um e outro se devia às atitudes humanas deles, que eram expressas por suas costas, disse ele. A postura básica de Karajan era muito orgulhosa, com os ombros para trás e atitude de estar no comando. É a atitude de alguém que espera que as coisas venham a ele. Para Nézet-Seguin, essa qualidade podia ser fria, majestosa, distante. Mas o magrelo Giulini se debruçava para frente assim que a música começava, num gesto de aproximar-se das pessoas, de lhes dar alguma coisa, de servir. É uma linguagem corporal muito reveladora, disse o regente, e estava relacionada às interpretações calorosas de Giulini. Zhang costuma debruçar-se para frente para arrancar mais intensidade da orquestra. Às vezes, inclina-se para trás para fazer com que os músicos toquem mais suavemente. Ou então se inclina para frente para cobrir o som, disse ela, como quem apaga um incêndio. PULMÕES Os regentes muitas vezes falam da importância da respiração: de inalar junto com o upbeat, para preparar para uma entrada, mais ou menos como um cantor inala antes de começar a cantar. As cordas precisam ser incentivadas a respirar, disse Nézet-Séguin, tanto quanto os instrumentos de sopros. Isso torna a coisa toda mais natural. Para Bicket, respirar junto quando ele rege é uma necessidade. Se suas mãos estão ocupadas de outro modo, tocando cravo ou órgão, sua deixa para as entradas muitas vezes é uma respiração audível. A natureza dessa respiração pode afetar a música. Uma inalação forte e aguda gera um som mais nítido e destacado. CÉREBRO Nas entrevistas, os regentes deixaram claro que, para eles, os movimentos corporais são menos importantes que a preparação mental e as ideias musicais que residem em outra parte do corpo: o cérebro. Os regentes precisam até certo ponto não ter consciência do que estão fazendo com seu corpo, disse Nézet-Séguin. Ele disse ainda que Giulini ensinava que a clareza de um gesto vem da clareza de sua mente. A confusão decorre daquela fração de segundo de hesitação, em que a mente está decidindo qual gesto usar. Zhang utiliza uma técnica adotada de seu mentor, Lorin Maazel: Uma projeção mental. Uma imagem mental clara do som que você quer ouvir permite uma entrada clara. Projetar mentalmente o pulso e o som, ela acrescentou, comanda nossas próprias mãos. Como disse Conlon: Poderíamos discutir gestos e posturas físicas interminavelmente, mas, em última análise, há um elemento impalpável e carismático que pesa mais que tudo isso. Até hoje ninguém conseguiu enquadrar esse elemento. Graças a Deus. Tradução de CLARA ALLAIN.

Monday, March 05, 2012

" Retrato de Adele"

Boa notícia para quem se encantou com o livro "A Lebre com Olhos de Âmbar", de Edmund de Waal, publicado há alguns meses no Brasil. Saiu nos Estados Unidos "The Lady in Gold" ("A Mulher Dourada - A história extraordinária da obra-prima de Gustav Klimt, o retrato de Adele Bloch-Bauer"), da jornalista Anne Marie O''Connor. O e-book sai por US$ 15,99.

A partir do destino de uma coleção de 264 pequenas esculturas japonesas, De Waal contou a história de sua família, a dos banqueiros judeus Ephrussi. Elas foram reunidas em Paris, guardadas em Viena, voaram para Tóquio e estão em Londres. Os Ephrussi perderam tudo o que tinham no confisco nazista, quando a Áustria, em êxtase ariano, foi anexada pelo Reich. A pedido do arcebispo de Viena, os sinos da cidade repicaram, saudando as tropas alemãs.

"A lebre" evitou o tom de indignação diante do antissemitismo e do Holocausto.

É um livro da alma, sem fígado. Mostra os Ephrussi no esplendor de Paris e Viena e na desgraça europeia da guerra. Contando a história do retrato de Adele Bloch-Bauer, O''Connor tomou o caminho oposto. Pisou firme na denúncia do antissemitismo que matou 65 mil judeus austríacos. Expôs os governos do pós-guerra, numa briga que só acabou em 2006.

Adele era mulher de um barão do açúcar, e Klimt pintou-a três vezes. Provavelmente namoraram. Um dos retratos, de 1907, com um fundo dourado em delírio bizantino, é uma das maiores obras de arte do século XX. Como os Ephrussi, os Bloch-Bauer foram depenados. O retrato, rebatizado como "Mulher em dourado", foi para um museu austríaco. Quando a guerra terminou, o novo governo desestimulou as reparações individuais das famílias de judeus espoliados e criou um sistema de devolução de obras de arte que apenas dissimulava a extorsão.

Esqueceram-se de uma sobrinha de Adele que fugira para os Estados Unidos e tinha uma loja de roupas em Los Angeles. Ao contrário dos Ephrussi, que receberam ninharias, Maria Altmann resolveu brigar. Estimulada por um repórter austríaco, conseguiu a ajuda de um jovem advogado, neto do compositor Schoenberg. Enfrentou a burocracia cultural e diplomática da Áustria, que se recusava a devolver o retrato de Adele e outros quatro quadros roubados da casa de sua tia. Seu litígio parecia risível, até que o advogado bateu à porta da Corte Suprema dos Estados Unidos e teve reconhecido o seu direito. Em 2006, humilhado, o governo da Áustria aceitou uma arbitragem e devolveu as obras. O "Retrato de Adele" foi comprado por US$ 135 milhões e hoje está na Neue Gallery, na esquina da Rua 86 com a Quinta Avenida, a poucos quarteirões do museu Metropolitan. Os outros quatro quadros foram a leilão e não se sabe quem os arrematou. Um deles, um retrato de Adele pintado em 1912, nunca mais foi mostrado. Quando os austríacos lamentaram que os quadros deixassem o país, Maria Altmann foi à forra: "Eles ficaram lá 68 anos, poderiam comprá-los". Os cinco herdeiros de Adele receberam cerca de US$ 300 milhões, e US$ 96 milhões foram para o advogado Rudolf Schoenberg.

Adele morreu de meningite em 1925, sem deixar filhos. Seu marido acabou-se num quarto de hotel em 1945, na Suíça. O tio foi fuzilado pelos comunistas na Iugoslávia. A tia foi para o Canadá, e sua filha conheceu num jantar um jovem alemão que, aos 15 anos, fugira do Exército Vermelho, lavara pratos num hotel de Vancouver e conseguira um emprego como motorista de cargas. Era o príncipe Auersperg, de uma dinastia cuja linhagem remonta ao século XI. Casaram-se. Hoje a princesa é uma renomada cancerologista. Maria Altmann morreu no ano passado, aos 94 anos.

Para os admiradores da "Lebre com olhos de âmbar": o quadro de duas meninas, filhas do banqueiro francês Cahen d''Anvers, que Charles Ephrussi negociou com Renoir, está no Masp. Elisabeth, a menina do vestido azul, convertera-se ao catolicismo e vivia na França. Em 1944, foi colocada num trem com destino a Auschwitz. Morreu no caminho.

Cecília

Wednesday, January 18, 2012

O que eles e elas querem

Mirian Goldemberg


Falta de compreensão e de escuta carinhosa parecem explicar boa parte da infelicidade nas relações amorosas
Homens querem compreensão, carinho, cuidado.

Um engenheiro, de 59 anos, diz: "Minha mulher vive dizendo que sou imaturo, que quero uma mãe, não uma mulher. As amigas dela dizem a mesma coisa de todos os homens. O engraçado é que nunca ouvi um só homem dizer que quer uma mãe.

E elas nunca perguntaram para mim o que eu quero. Elas mesmas decidiram: homens querem mãe. Ponto final!".

Ele continua: "Elas dizem que não gostamos de discutir a relação. Mas como dá para discutir se elas já nos rotularam como bebês carentes? Elas se sentem superiores e acham que podem dizer o que é certo e errado em termos de de maturidade, de afeto".

Eles dizem que querem uma mulher que os amem exatamente como são. Não alguém que critique o tempo todo e queira mudar tudo neles: da roupa que usam até as brincadeiras e piadas que gostam de fazer com os amigos. Perguntam: por que elas não aceitam que os homens são diferentes? Por que se acham melhores do que nós?

Mulheres querem reconhecimento, escuta, intimidade, visibilidade, sentirem-se únicas, inesquecíveis.

Uma professora, de 55 anos, diz: "Eu quero me sentir especial, ser escutada com atenção, ser amada mesmo gordinha, com rugas e celulite. Quero sentir que sou a mulher mais gostosa do mundo para o meu marido".

E acrescenta: "Quero que, para ele, e só para ele, eu seja a única mulher do mundo, que ele não se interesse por mais ninguém. Morro de inveja de mulheres que não trabalham e às quais o marido dá um cartão de crédito sem limite. Quer maior prova de amor? Mulheres que não são jovens ou bonitas, mas são tratadas como princesas".

Elas dizem que sentem falta de que eles as admirem, desejem, respeitem e valorizem. Sentem-se invisíveis ou ignoradas no meio de mulheres que eles consideram mais interessantes, desejáveis ou "leves". Querem ser a mulher mais importante na vida deles. E ainda perguntam: "É querer muito?"

Homens e mulheres estão extremamente infelizes em suas relações amorosas. Mas não querem ficar sozinhos. São reincidentes: casam, separam, casam de novo, separam de novo...

A falta de compreensão e de escuta parece explicar grande parte das insatisfações masculinas e femininas.

Parece tão simples, mas que tal perguntar para o outro o que ele realmente quer? E ouvir com atenção e carinho a resposta, sem julgar, rotular e condenar?

Friday, January 06, 2012

Retrato de Ana

Ana mãe
Ana filha
Ana só
Ana que se destaca sozinha
Ana de cabelos escuros e olhos expressivos
Ana bonita: rosto em pedra e nuvem esculpido
Ana forte, Ana frágil, Ana perdida
... também contida
Um enigma
Ana que ama...mas que é triste...

Cecília
05/01/2012