Friday, October 07, 2011

O sentido faz falta?

CONTARDO CALLIGARIS



--------------------------------------------------------------------------------
A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto
--------------------------------------------------------------------------------



É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido -muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".

Wednesday, October 05, 2011

Blue Valentine

Crítica: Namorados para Sempre

Fred Burle

Terminar um relacionamento não é fácil. Às vezes, começar também não. A verdade é que mantê-lo é que é o mais difícil. Ora com poesia ora sem poesia alguma, é com esta visão realista que o diretor Derek Ciafrance transpõe para a tela um dos amores mais comuns: aquele que é baseado na ocasião, quando nunca realmente existiu.


Dean (Ryan Gosling) e Cindy (Michelle Williams) não vivem o melhor dos momentos no casamento, mas fazem de tudo para esconder isso da filha. Ele faz de tudo para melhor a situação, mas ela, por algum motivo, não parece mais disposta a trilhar aquele caminho.


Por mais que o personagem de Ryan Gosling seja extremamente bonzinho e simpático, fica claro que existem motivos reais para a frustração da mulher. É com uma montagem sutil e de difícil leitura – para o espectador acostumado a linearidades – que o filme explicará, bem aos poucos, indo e vindo através dos anos, porquê o casamento não deu certo.


O primeiro quarto do longa é dedicado a construir a mise-en-scène de crise, deixando fértil o terreno para o que se segue. “Como confiar nos seus sentimentos, quando eles desaparecem?”, pergunta a filha. “Acho que você só poderá descobrir, se tiver o sentimento”, responde a avó. Naquele diálogo aparentemente solto no meio do filme reside a chave para a sua total compreensão.


Salvo raros momentos românticos encantadores – vide Cindy dançando na rua ao som do banjo de Dean – é no clima depressivo que o filme se baseia. É num quarto de motel, de decoração futurista, capenga e azulada que o diretor encontra o cenário perfeito para desenvolver o seu blue valentine.


Ryan Gosling ficou fora do Oscar, infelizmente, mas a justiça se fez pela indicação de Michelle. Sua Cindy soa misteriosa, é menina, vadia, mãe, enfermeira, frígida e fogosa. Tudo ao mesmo tempo. Defeituosa e qualitativa, é afinal, absolutamente humana.


A fervura ou frieza do casal não é fruto do acaso. É influenciado por circunstâncias, pessoas e desejos oprimidos. O que se passa hoje é resultado do que foi construído desde o passado. O longa nos joga na cara que, por estas e por outras, não podemos julgar as atitudes de cada um (por mais estranhas que pareçam no momento), sem sabermos exatamente o quê as levou a cometê-las.


Filme de baixíssimo orçamento (apenas 1 milhão de dólares), “Blue Valentine” é mais um indie que mostra que a força de uma obra está no seu roteiro e na paixão com que seus envolvidos a realizam. Com depressão e realismo, mostra que a música que embala o amor pode ser a mesma que embala o ódio e a mágoa.

Blue Valentine

Um belo filme

" Anti-Romance" para incomodar quem ama
Direção delicada, roteiro cruelmente realista e performances inspiradas unem-se para “desmascarar” o mais tradicional dos vínculos afetivos em uma história sobre o amor e como ele se dilui.


Darlano Didimo



História de amor é o tema preferido do cinema mundial, dando origem a inúmeras produções recentes que, em sua maioria, optam por satisfazer o espectador com um final feliz. E quem não gostaria de viver um romance como os de Hollywood? Encontrar a pessoa certa, ser correspondido, iniciar o relacionamento e sustentá-lo até o fim da vida de ambos (ou pelo menos durante um período que torne a experiência inesquecível) é o sonho de nove em cada dez pessoas. “Namorados Para Sempre” também tem essa fatia fantasiosa, mas faz questão de fazê-la desmoronar com uma segunda linha de tempo que coloca a dura realidade da vida a dois em evidência.

Estreia de Derek Cianfrance nos cinemas, o filme exibe a vida de Cindy (Michelle Williams) e Dean (Ryan Gosling), primeiramente um jovem casal que se conhece pelas artimanhas do destino. Ele é um ajudante de mudanças, enquanto ela estuda para cursar medicina. A paixão brota e os dois iniciam um bonito relacionamento, nem mesmo atrapalhado por um marcante descuido. Os anos passam e depois já os acompanhamos como marido e mulher. A chama do amor, porém, desapareceu e a separação do antes casal unido parece inevitável. O que teria acontecido nesse intervalo de tempo?

Cianfrance prefere não dá respostas. Cabe ao público, especialmente a quem já viveu esse tipo de experiência, preencher a lacuna e se identificar ou não com a história de vida de Cindy e Dean. Mas mesmo que ela não se encaixe no seu perfil, o diretor e roteirista (que nessa função reparte o trabalho com Cami Delavigne e Joey Curtis) faz ser doloroso acompanhar algo que se não tinha tudo para se tornar eterno, pelo menos jamais poderia ter um ponto final tão amargo. Desconstruindo a cultuada instituição casamento e indo contra a corrente do cinema norte-americano o qual representa, o cineasta nos presenteia com um filme que é uma mistura de sentimentos, mas que, acima de tudo, incomoda.

Incomoda por ser visceral, propositalmente destituído de idealizações e comprometido com a verdade que defende. A câmera sempre próxima ao rosto dos personagens revela o desgaste causado pela convivência diária, a dificuldade de criar uma filha e sustentar o lar ou de simplesmente concordarem sobre um assunto banal. Uma inexplicável competividade tomou o lugar do amor e ambos parecem mais felizes sozinhos. Nem mesmo o sexo os faz se entenderem. A passividade provoca o domínio do outro, como tem sido aparentemente com a quieta Cindy, enquanto a argumentação leva a confrontos físicos.

A imaturidade do rapaz continua. Se antes ela causava surpresas agradáveis ou apenas demonstrava a vontade dele de permanecer ao lado da garota, agora ela se tornou um empecilho para que continuem juntos. As bebedeiras revelam um Dean agressivo, sem tolerâncias, sem capacidade de encontrar um emprego. Cianfrance, enfim, o culpa pelo fim do casamento, justificando muito bem a opção ao construir personagens que sem mantém distante de vilões e mocinhos. Eles são complexos e dramáticos, vivem em casa simples e não têm luxos. Podem até ser bonitos, mas o charme ficou pra trás.

Ficou na época em que se conheceram. E o charme nessa linha de tempo do longa não está apenas no casal, mas também na direção de Derek Cianfrance. Delicado como poucos, ele sabe como desenvolver o nascimento de uma paixão, orquestrando cenas que, mesmo com um alto grau de naturalismo, exalam magia, utilizando-se com sabedoria da tocante trilha sonora de Grizzly Bear ou dispensando-a quando o som é feito pelos próprios protagonistas, como na sequência em que Cindy dança enquanto Dean toca ou, na melhor de todas elas, quando os dois escutam música na cama.

O resultado final de “Namorados Para Sempre”, no entanto, não seria o mesmo se não fosse Michelle Williams e Ryan Gosling. A química é visível entre os dois, assim como cessa quando necessário. O desempenho individual merece ainda mais destaque. Gosling surge autêntico e carismático, para depois interpretar um Dean trágico e irresponsável, que não mais leva rosas e sim a um motel de extremo mau gosto. Já Williams mostra porque é uma das melhores atrizes em atividade, justificando sua indicação ao Oscar por meio de uma personagem que encanta sem fazer esforço e que dá dó apenas de olharmos para o seu rosto expressivo.

Mesmo com a lembrança de Williams na temporada de premiações, o filme merecia mais reconhecimento. Mas nem todo mundo sabe lidar com a dor da realidade, com o fato de que o casamento pode não ser a etapa mais bonita de uma vida. Derek Cianfrance defende sua polêmica visão de mundo da forma mais doída possível, felizmente, revelando-se um cineasta que merece ser acompanhado de perto pelos cinéfilos.

P.S.: Não se deixe enganar pelo título brasileiro do filme. “Namorados Para Sempre” é o medíocre nome encontrado pela Paris Filmes para enganar o espectador que busca um romance comum. O título original, “Blue Valentine”, que significa algo como “namorado triste”, é bem mais apropriado.

____
Darlano Dídimo é crítico do CCR desde 2009. Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é adorador da arte cinematográfica desde a infância, mas só mais tarde veio a entender a grandiosidade que é o cinema.

Sunday, October 02, 2011

O mercado está condenado

Barbara Gancia


--------------------------------------------------------------------------------
'Em 12 meses, milhões vão sumir. Isso é só o começo. O pior risco é não fazer nada. Proteja seus ativos'
--------------------------------------------------------------------------------


REPERCUTIU ATÉ no dogão da dona Maria o show que um operador de mercado deu na BBC nesta semana. Chamado a opinar sobre a crise, ele foi tão contundente que fez a entrevistadora admitir: "O senhor acaba de derrubar o queixo de todos no estúdio".
De fato, o quadro pintado pelo zé-mané foi aterrorizante, um desalento para quem tem ainda alguma ilusão quanto a democracia e o capitalismo. O seu emprego, meu dileto leitor, sua poupança, sua reles existência, aparentemente, nada disso interessa ao sistema financeiro globalizado. Ninguém quer saber, inclusive, do seu voto ou impostos.
Estamos cansados de ouvir essa verdade ser contada pela boca de filósofos como Slavoj Zizek, que vivem de detonar o sistema. Mas quando a crítica vem de dentro apavora um tico a mais.
O operador independente Alessio Rastani (apelido "Ratfuck") foi tão rústico em sua análise sobre a crise na Europa que lembrou Roberto Jefferson quando o deputado apontou o dedo para o então ministro José Dirceu.
O vídeo está aqui youtu.be/BMrHo0Alexw , mas não precisa sair correndo para assistir que eu conto tudo. Antes, porém, algumas considerações sobre a motivação do senhor Rastani.
A mim realmente não importa se o operador é ex-funcionário de algum grande fundo, se tomou um chute no fiofó da Goldman Sachs, se agiu movido por ressentimento ou se expôs os fatos em toda a crueza porque a mulher passou a noite com dor de cabeça.
Tem gente dizendo que se trata de mercenário ou impostor. Ora, será que é tão difícil assim aceitar que até um "trader" possa ter alma? Em vez de insultá-lo, eu lhe daria um troféu. Nunca vi usar de tamanha objetividade para descrever situação tão complexa.
Se você também consegue pressentir que os pacotes foram insuficientes, que falta regulamentação, que nada do que estava errado foi corrigido e que poucos controlam toda a flutuação, também saberá apreciar o que ele disse.
Ele abre sentenciando que "O mercado está condenado". A entrevistadora pergunta o que se deve fazer. "Veja, não tenho esse tipo de preocupação", diz. "Sou um operador de mercado, se enxergo uma oportunidade de ganhar dinheiro, corro atrás. Não é problema meu como vão sanear a economia. Pessoalmente, venho sonhando com esta crise há três anos. Vou confessar uma coisa: eu vou para a cama toda noite sonhando com uma nova recessão, com um momento como este".
Não é de morder uma pessoa capaz desta candura elevada? Rastani continua: "Muita gente ganhou com a crise de 29 e isso não é só para uma pequena elite, é para todos. Quando o mercado despenca, quem planejou pode ganhar com estratégias de 'hedging' e investindo em títulos do governo. Daqui a 12 meses, a poupança de milhões de pessoas irá desaparecer. E isso é só o começo. O pior risco que você pode correr hoje é não tomar providências. Proteja seus ativos. Esta crise é como um câncer. Não se deve esperar que o governo resolva. Prepare-se. Governos não mandam no mundo, quem manda é a Goldman Sachs". E viva a volatilidade! Amigo meu, mestre do universo em pé de igualdade com Gordon Gekko e Sherman McCoy, só ficou decepcionado com essa última parte da fala. "Teria preferido vê-lo desprezar a Goldman Sachs, não é tudo isso, não", disse-me. "De resto, porém, o camarada não errou". Bora andar de montanha-russa, então!