Wednesday, December 15, 2010

Susto
De amar e não ser amada
De deixar a vida passar em branco
De nada realizar
De ser diferente
Ter um destino diferente
E não aceitá-lo,
Não compreendê-lo
Medo
De ser deixada às traças
De a ninguém agradar
De ficar só
Eternamente
De me sentir tão só
Que a minha dor pareça única, total, incurável,
Incomunicável
Medo,
Que me faz seguir caminhos que não quero
Que parece não me deixar escolha
A não ser fingir ser outra pessoa
Mais aberta, mais solta
Mais firme em suas escolhas,
Tudo entendendo:
O que passou, o que se passa agora;
Dona do futuro, da própria vida,
um ser livre, em paz, vivendo conscientemente...

Cecília

Para tantas pessoas, frágeis em sua humanidade...


15-06-09

Sunday, December 12, 2010

Gênesis

Fernanda Torres

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Mann criou segunda Bíblia para entender a primeira, enquanto Robert Crumb idolatra as mulheres
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O FUNDO do poço já rendeu uma canção belíssima de Caetano Veloso, mas, de todas as obras baseadas em narrativas bíblicas, nenhuma alcança a profundidade de "José e Seus Irmãos".
A saga da família de Jacó, narrada de maneira seca e objetiva no livro sagrado, se transforma, nas mãos do alemão Thomas Mann, em três volumes fartos e detalhados a respeito dos sentimentos de pastores do Crescente Fértil e de faraós do Egito.
"José e Seus Irmãos" abre os trabalhos com uma parábola a respeito do milagre da encarnação e de como a força amalgamadora do amor uniu a carne ao espírito.
Mann, fiel ao prólogo, faz do amor o norte de sua criação, seja na paixão de Jacó por Raquel, que o leva a 14 anos de servidão a Labão, seja na predileção de Jacó por José, primogênito tardio de Raquel, ou na inveja dos irmãos de José, filhos das outras mulheres de Jacó.
Mann segue rigidamente o argumento sagrado, enquanto preenche de alma a carne enxuta das escrituras. As razões íntimas dos personagens, inexistentes no original, desabrocham na sua releitura, é de enlouquecer de tão belo. "José e Seus Irmãos" é leitura obrigatória, uma segunda Bíblia para entender a primeira.
Recentemente, dei cabo do "Gênesis" do artista americano Robert Crumb. Crumb, ao contrário de Mann, não acrescenta nem uma vírgula ao texto bíblico; é através da volúpia de seus traços que a carnalidade da obra se revela ao leitor.
As coxas grossas, as bundas duras e os bicos tesos dos peitos fartos de Crumb parecem ter nascido para ilustrar a ânsia dos hebreus de fazer valer as palavras de Deus: crescei e multiplicai-vos!
Os homens se deitam como touros com suas esposas, concubinas e escravas; para a atingir o mesmo fim, as mulheres se valem das mais impensáveis artimanhas. Um bom exemplo é o das duas filhas de Ló, sobreviventes de Sodoma e Gomorra, que embriagam o próprio pai e emprenham do progenitor para servir aos desígnios de Deus. Que mal há no incesto diante da ordem suprema de fundar uma nação populosa? O resultado é uma fornicação furiosa que faria ruborizar a mais liberta das devassas e deliciar o mais blasfemo dos cartunistas.
Crumb idolatra as mulheres. Se o amor foi o ponto de partida de Mann, o matriarcado velado da Bíblia foi a pedra fundamental da obra de Crumb. O americano se serviu de um livro chamado "Sarah, the Priestness", de Sevina Teubal, para compreender passagens obscuras para a moral de um ocidental hoje.
Como explicar que o nômade Abraão ofereça a própria mulher aos chefes poderosos de cada cidade que visite, dizendo se tratar de sua irmã? Seria Abraão o primeiro cafetão da história? E como entender o comportamento de Tamar, viúva de Er, filho de Judá, que, ao não ser dada como mulher ao cunhado, se vestiu de prostituta para ser possuída pelo sogro? A resposta estaria, segundo Sevina, em resquícios de um matriarcado ainda latente 3.000 anos antes de Cristo.
Talvez a crença de que o matriarcado seria uma versão mais humana do belicoso patriarcado tenha fundamento. Pode ser que a ideia de posse não fosse tão importante em uma sociedade dominada pelas mulheres. Depois de tantos anos de vitória masculina, é difícil projetar o que teria sido feito de nós se o matriarcado tivesse vingado.
Minhas ilusões a respeito da doce dominação feminina foram por água abaixo no dia em que assisti a um documentário sobre o comportamento das hienas. As fêmeas são o sexo forte nessa sociedade animal. A brutalidade e a feroz virilidade masculina cedem seu posto a uma hierarquia libidinosa, baseada em dominação por servidão lingual. As mais fortes tem a genitália lambida pelas mais fracas, até chegar a uma pobre hiena que satisfaz a todas e não é satisfeita por ninguém.
Dá o que pensar... Seríamos nós mais sensuais se as sacerdotisas da fertilidade estivessem no poder?
As taras de Crumb, sua devoção às curvas apetitosas das filhas de Eva, produziram a mais feminista das interpretações do Gênesis. Senti falta da delicadeza de Mann no trecho final de "José", mas devorei com volúpia as liberdades das Saras, Rebecas, Tâmaras, Lias e Raquéis.
Aconselho ler a Bíblia com o auxílio luxuoso de Crumb e Mann. A mulher e o homem. A carne e o espírito.
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Saturday, December 04, 2010

“Encontro doméstico”

A pequena lagartixa me encara, assustada.
Não me conhece.
Não sabe que não sou de nada,
que não faria mal a uma barata.
Antes, a olho com pena, pensando:
Poderia ser o inverso: eu lagartixa,
e ela este ser grande pensante.
Será que ela pensa?
Parece que sim, pois permanece
me encarando paralisada.
Eu, que tantas vezes me senti assim acuada,
tento ajudá-la a partir:
abro-lhe a janela, mas ela não sai...
Lá fora está frio, é noite.
Por mim, tudo bem,
desde que não invada meu espaço...
Pobrezinha, tão branca!
Parece até transparente.
Volto a pensar:
se fosse eu, assim tão frágil,
que desgraça!
Agora apago a luz, esperando que ela parta.
Acendo-a de novo e nada...
Então, tendo que sair,
deixo-a ali mesmo, no alumínio grudada
E tchau
Boa noite, boa sorte.
E até outra hora.
Mas recomendo aos que ficam,
que não a maltratem
Como é fácil comigo fazer amizade!...

Será que estou ficando louca?
Ou vazia de emoção é a minha vida?
Daqui a pouco estarei fazendo verso pra baratas!!!

Cecília

Friday, November 19, 2010

Escolhas

Silêncio

Que dá margem a interpretações diferentes
Cômodo, esperto, um jeito de ganhar tempo
Fugir da raia
Ou conservar em banho-maria o sentimento
Mas há que se ter cuidado com o contrário:
Indiferença tomando espaço
Ou emoção como a raiva efervescendo
Melhor acreditar na transparência...

Cartas na mesa

Uma a uma vou abrindo
Conhecendo teus pensamentos e segredos
Jogamos limpo:
Dos meus também terás conhecimento
Neste jogo vence o mais leal,
quem menos medo tiver de mostrar as suas cartas
Direito à desistência e prêmio à coragem:
Exposição requer bravura e sinceridade


Caminhos alternativos

Nos perdemos em curvas, estradas secundárias
Não vamos direto a nenhum assunto
E a vida se mostra cada vez mais complicada...

Cecília

Thursday, November 18, 2010

Para nós que fazemos bom uso da Internet

CARLOS HEITOR CONY

Amor virtual
RIO DE JANEIRO - Recém chegado ao universo virtual, tenho sentimentos contraditórios a respeito da nova linguagem que, aparentemente, e até aqui, está unindo homens e mulheres, velhos e crianças, doentes e sadios numa humanidade especifica, que, por não ter existido antes, agora está sendo testada.
Ouve-se falar em abusos de sexo e pornografia, de pedofilia e outras taras que encontraram um espaço surpreendente na telinha. Telinha que, por bem ou por mal, está substituindo o livro, o jornal e a própria TV, uma vez que pode condensar tudo isso num pequeno e cada vez menor retângulo iluminado.
Assim como não me atrai a pizza que a gente encomenda, paga com cartão, mas recebe fria, o sexo virtual não me deslumbra suficientemente para me dedicar a ele. Prefiro o sexo em sua tradicional versão off-line.
Contudo, sou obrigado a reconhecer a eficiência da comunicação eletrônica, notadamente o e-mail, naquilo que antigamente os caretas chamavam de paquera e hoje tem outros nomes.
Pois o que acontece comigo -e deve acontecer com todo mundo- é a assombrosa capacidade do relacionamento virtual, que, entre mortos e feridos, sempre dá para pescar uma alma solitária, ou mesmo -levando ao limite- aquelas que se intitulam "coração em chamas", colocando-se adredes para receber o jato salvador que as inunda de salvação.
Um homem terminal, não por gosto, mas por contingência histórica, já não teria esperança e muito menos direito de manter certo tipo de diálogo com a geração que anda pelos vinte e tantos anos. No início, estranhei este tipo de diálogo/envolvimento, recusei alguns, pedindo que tomassem juízo.
Que eu próprio tivesse juízo. Mas começo a me habituar. E, um pouco envergonhado, admito que estou gostando.

Wednesday, November 17, 2010

Cômico? Triste? Espelho de nossos dias

FERNANDO DE BARROS E SILVA

Geisy na roda
SÃO PAULO - Levou um ano para que a roda da fortuna desse a volta completa no caso Geisy Arruda.
No final de outubro de 2009, ela foi alvo do acesso de fúria dos colegas. Teve que ser retirada da Uniban escoltada, sob humilhações e ameaças de estupro. O vestidinho, as alegações machistas de que a jovem se insinuava -tudo serviu de pretexto para respaldar a barbárie. A universidade decidiu expulsá-la, em nome do "ambiente escolar".
Estava anunciado para ontem o lançamento de "Vestida para Causar", uma biografia precoce de Geisy, 21 anos. Seu produto mais falado, no entanto, é o ensaio de capa para a revista "Sexy", que vai batendo recordes de vendas.
Com o sucesso, Geisy se vinga da sociedade (e da universidade) que a ultrajou; a sociedade, por sua vez, usa o sucesso de Geisy como oportunidade para reafirmar preconceitos que tinha desde o início sobre ela -e assim também se vinga.
Humilhação social e ascensão social não são antagônicos, mas estão misturados e submetidos à mesma lógica fulminante neste caso. Geisy parece protagonizar uma espécie de reality show na vida real.
"Passei sete dias de cama, uma dor horrível, mas para a minha autoestima foi bom, como eu te disse, minha proposta de vida é evoluir", disse ela, ao relembrar da lipoaspiração que fez em fevereiro, numa entrevista a "O Estado de S. Paulo".
A conversão da jovem da periferia em celebridade segue um roteiro bem conhecido: fazer plástica (mais peito, menos barriga), ser destaque no Carnaval, participar de programas de auditório, lançar sua grife, enfim posar nua. Geisy completou o ciclo, que lembra menos a roda da fortuna do que a roda-viva.
Como quem intui que essa fantasia cobra um preço alto demais e pode evaporar num estalo, ela diz:
"Hoje mesmo fui atrás de um tapete de Cinderela, já tenho copos de Cinderela, lençol, toalha, meu quarto na casa nova vai ser todo de Cinderela -porque eu sou a Cinderela, você sabe, não é?".

Wednesday, November 03, 2010

Uma idosa pede passagem

ANNA VERONICA MAUTNER


Quanto treino é exigido do homem urbano para passar do útil, do produtivo, para o à toa, o fazer por fazer?



O AUMENTO da proporção de idosos na população vem preocupando governos de todo o mundo. Atender os de mais idade demanda revisão da distribuição orçamentária, assunto bem complicado para legisladores e executivos. Difícil chegar a consenso.
Lendo sobre o assunto e mesmo vivendo na própria pele, eu queria falar sobre o uso, pelos idosos, não dos recursos econômicos, mas do tempo e do espaço.
Não há a menor dúvida entre especialistas de que a qualidade de vida do idoso relaciona-se com a atividade tanto mental quanto corporal. Mudar de ser planejante, sempre cheio de objetivos e intenções, para um ser capaz de atividades com vistas não para o "amanhã" e sim para o "aqui agora" demanda treino, consciência e empenho.
As instituições voltadas à saúde do idoso preocupam-se com gastos, prevenção, orçamento, sem dúvida parte importante do problema.
Mas eu pergunto: quanto treino é exigido do homem urbano para passar do útil para o à toa, o só por fazer, pelo simples prazer de realizar e se aperfeiçoar?
A aposentadoria muitas vezes pode parecer precoce, e o tempo de vida, depois de terminada a chamada etapa produtiva, foi se tornando, felizmente, cada vez mais longo. Deveríamos cuidar do projeto para o bem viver nessa faixa etária bem antes de a aposentadoria ocorrer.
É necessário desenvolver aptidão para o fazer por fazer, o estar por estar, sem qualquer ligação com fins outros que não o instante que se está vivendo.
Isso é mais ou menos familiar com crianças antes de entrarem na escola propriamente dita. No pré e no jardim, tudo é espontâneo e à toa. Mas não há nenhuma possibilidade de retorno a essa etapa na terceira idade.
Toda uma outra história já se inseriu nas nossas vidas, marcando as mentes a ferro e fogo, como tatuagem.
Já escrevi sobre a importância da praça neste mesmo espaço de jornal. Retomo a ideia. Cabe aos urbanistas e a eles dirijo o pedido de prever muitos espaços de convivência -esportivos, artísticos, culturais ou de mero convívio.
Lugares que não existam para despertar desejos, como shoppings, mas sim espaços públicos de uso voluntário, isto é, onde não se precise ter carteirinha nem dinheiro.
Quero ir, voltar, ficar só ou em companhia. Quero ser objeto de trabalho de urbanistas e promotores culturais, não só de médicos e economistas.

Wednesday, October 13, 2010

Homem comum

(Semelhança)


Será pelos teus olhos castanhos,
como aqueles outros
pelo nariz fino, cor morena,
ou ainda pela linha dos teus cabelos negros,
pelo jeito franco, espontâneo
de quem nada deve
e pode dormir o sono dos justos
... ou dos anjos...


Será pela lealdade, constância,
ou por seres quem és,
sem interpretar papel nenhum?...
Não vou dizer que és único
porque me lembras um outro
de quem me orgulho,
talvez por não ter querido ser senão...
... um ser comum...

Cecília
05/10/10

Sunday, October 10, 2010

O que se foi

O que se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.


Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.


Então por que me faz
o coração bater tão forte?


Ferreira Gullar

Friday, October 08, 2010

Jogo da Vida

Em torno de mim peças de um quebra-cabeça se encaixam,
Movidas por mãos... divinas?
Mínimo se torna meu espaço.
De que me queixo?
São peças pra lá de bonitas,
Verdadeiro presente da vida.
Por que a gana de briga? Anseio de liberdade?
Não sei...
Vesti um casaco apertado,
E me sinto nele entalada,
Comprimida, sufocada...
Sim, sou presa de cotidiana felicidade

Cecília

Tuesday, October 05, 2010

Entreato

Não me vejo mais em lugares
antes tão familiares...
Mudei eu, ou mudou a casa?
Mesmo minha imagem parece desfocada,
pois toda luz está em ti centrada.
Não mais pertenço, não pertenço ainda...
Solta, minha alma voa...
E o sonho não deixa espaço para nada.
Lá vou eu... só amor (ou fantasia?)
embalada por palavras de carinho.
Sopro de vida em meu coração quase adormecido,
Fogueira acesa, onde antes só havia cinzas...

Cecília

Saturday, October 02, 2010

A vida passada a limpo

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A poesia é compatível com uma infinidade de formas e de temas. Nenhuma opção é vedada ao poeta a priori
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NA VÉSPERA das eleições, é natural que praticamente não se fale senão de política: e às vezes com uma histeria tanto maior quanto menos importante é o que se diz. Para variar, voltarei a escrever sobre um dos meus assuntos favoritos e inesgotáveis: "Que é a poesia?"
Outro dia, para tentar responder a essa pergunta, vali-me de um poema de Manuel Bandeira, "O Rio". Hoje aproveito o extraordinário título de um livro de Carlos Drummond de Andrade: "A Vida Passada a Limpo".
Passar a limpo um texto é retirar-lhe tudo o que não lhe pertence por direito, modificar o que deve ser modificado, adicionar o que falta, reduzi-lo ao que deve ser e apenas ao que deve ser. No caso de um poema, faz-se isso até o impossível, isto é, até que ele resplandeça. O que resplandece é o que vale por si: o que merece existir.
Para tentar chegar a esse ponto, o poeta necessita pôr em jogo, até aonde não possam mais ir, todos os recursos de que dispõe: todo seu intelecto, sua sensibilidade, sua intuição, sua razão, sua sensualidade, sua experiência, seu vocabulário, seu conhecimento, seu senso de humor etc. E entre os "cetera" encontra-se a capacidade de, a cada momento, intuir o que interessa e o que não interessa naquilo que o acaso e o inconsciente ofereçam.
Em princípio, tudo num poema é arbitrário. O poeta sabe que a poesia é compatível com uma infinidade de formas e temas. Ele tem o direito de usar qualquer das formas tradicionais do verso, o direito de modificá-las e o direito de inventar novas formas para os seus poemas. Nenhuma opção lhe é vedada a priori; em compensação, nenhuma opção lhe confere garantia alguma de que sua obra venha a ter qualquer valor.
O poema se desenvolve a partir de alguma decisão ou de algum acaso inicial. Por exemplo, ocorre ao poeta, em primeiro lugar, uma frase que ouviu no metrô; a partir dela, esboça-se uma ideia: e ele começa a fazer um poema. Ou então ocorre-lhe uma ideia e ele tenta desdobrá-la e realizá-la. A cada passo, é preciso fazer escolhas. Em algum momento -seja no início, seja no meio do trabalho- impõe-se decidir a estrutura global do poema: se será longo ou curto; se será dividido em estrofes; se seus versos serão livres ou metrificados; se serão rimados ou brancos; se o poema como um todo terá um formato tradicional, como um soneto, ou uma forma "sui generis" etc. Às vezes, uma primeira decisão parece impor todas as demais, que vêm como que natural e impensadamente; às vezes, certos momentos se dão como crises que aguardam soluções.
Cada escolha que o poeta faz limita a liberdade vertiginosa de que ele dispunha antes de começar a escrever. As restrições devidas a formas autoimpostas são importantes, porque exatamente o esforço consciente e obsessivo para tentar resolver a tensão entre elas e o impulso expressivo é um dos fatores que mais propiciam a ocorrência de intervenções felizes do acaso e do inconsciente: o que, de certo modo, dissolve a dicotomia tradicional entre a inspiração, por um lado, e a arte ou o trabalho, por outro.
Assim, numa época em que "tempo é dinheiro", a poesia se compraz em esbanjar o tempo do poeta. Mas o poema em que a poesia esbanjou o tempo do poeta é aquele que também dissipará o tempo do leitor ideal, que se deleita ao flanar pelas linhas dos poemas que mereçam uma leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada. Ora, é por essa temporalidade concreta, que se põe no lugar da temporalidade abstrata do cotidiano, que se mede a grandeza de um poema.
Dizer que a poesia é a vida passada a limpo é dizer que a vida é o rascunho da poesia. Isso significa que o fim da vida é virar poesia. Por essa razão, longe de ser um meio (por exemplo, um meio de "expressão" ou de "comunicação") para o poeta, a poesia é o seu fim. Dado que o fim subordina os meios, e não vice-versa, o poeta é um servo -um servo voluntário e apaixonado, é verdade, mas um servo- da poesia. Nessa relação, não é ela que se inclina às conveniências dele, mas é ele que deve dobrar-se às exigências e aos caprichos -inclusive aos silêncios- dela.

Antonio Cicero


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Thursday, September 23, 2010

A felicidade nas telas

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A necessidade de mostrar ao mundo um semblante feliz é uma das grandes fontes de infelicidade
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UMA AMIGA inventou um jeito de curtir sua fossa. Depois de um dia de trabalho, de volta em casa, ela se enfia na cama, abre seu laptop e entra no Facebook.
Ela não procura amigos e conhecidos para aliviar o clima solitário e deprê do fim do dia. Essa talvez tenha sido a intenção nas primeiras vezes, mas, hoje, experiência feita, ela entra no Facebook, à noite, como disse, para curtir sua fossa. De que forma?
Acontece que, visitando as páginas de amigos e conhecidos, ela descobre que todos estão muito bem: namorando (finalmente), prestes a se casar, renovando o apartamento que sempre desejaram remodelar, comprando a casa de praia que tanto queriam, conseguindo a bolsa para passar dois anos no exterior, sendo promovidos no emprego ou encontrando um novo "job" fantasticamente interessante. E todos vivem essas bem-aventuranças circundados de amigos maravilhosos, afetuosos, alegres, festeiros e sempre presentes, como aparece nas fotografias postadas.
Minha amiga, em suma, sente-se excluída da felicidade geral da nação facebookiana: só ela não foi promovida, não encontrou um namorado fabuloso, não mudou de casa, não ganhou nesta rodada da loto. É mesmo um bom jeito de aprofundar e curtir a fossa: a sensação de um privilégio negativo, pelo qual nós seríamos os únicos a sofrer, enquanto o resto do mundo se diverte.
Numa dessas noites de fossa e curtição, minha amiga, ao voltar para sua própria página no Facebook, deu-se conta de que a página não era diferente das outras. Ou seja, quem a visitasse acharia que minha amiga estava numa época de grandes realizações e contentamentos. Ela comentou: "As fotos das minhas férias, por exemplo, esbanjam alegria; elas não passaram por nenhum photoshop, acontece que são três ou quatro fotos "felizes" entre as mais de 500 que eu tirei".
Logo nestes dias, acabei de ler "Perché Siamo Infelici" (porque somos infelizes, Einaudi 2010, organizado por P. Crepet). São seis textos de psiquiatras e psicanalistas (e um de um geneticista), tentando nos explicar "por que somos infelizes" e, em muitos casos, por que não deveríamos nos queixar disso.
Por exemplo, a infelicidade é uma das motivações essenciais; sem ela nos empurrando, provavelmente, ficaríamos parados no tempo, no espaço e na vida. Ou ainda, a infelicidade é indissociável da razão e da memória, pois a razão nos repete que a significação de nossa existência só pode ser ilusória e a memória não para de fazer comparações desvantajosas entre o que alcançamos e o que desejávamos inicialmente.
Não faltam no livro trivialidades moralistas sobre o caráter insaciável de nosso desejo ou evocações saudosistas do sossego de algum passado rural. Em matéria de infelicidade, é sempre fácil (e um pouco tolo) culpar a sociedade de consumo e sua propaganda, que viveriam às custas de nossa insatisfação.
Anotei na margem: mas quem disse que a infelicidade é a mesma coisa que a insatisfação? E se a infelicidade fosse, ao contrário, o efeito de uma saciedade muito grande, capaz de estancar nosso desejo? Que tal se a infelicidade não tivesse nada a ver com a ansiedade das buscas frustradas, mas fosse uma espécie de preguiça do desejo, mais parecida com o tédio de viver do que com a falta de gratificação? Em suma, você é infeliz porque ainda não conseguiu tudo o que você queria, ou porque parou de querer, e isso torna a vida muito chata?
Seja como for, lendo o livro e me lembrando da fossa de minha amiga no Facebook, ocorreu-me que talvez uma das fontes da infelicidade seja a necessidade de parecermos felizes. Por que precisaríamos mostrar ao mundo uma cara (ou uma careta) de felicidade?
1) A felicidade dá status, como a riqueza. Por isso, os sinais aparentes de felicidade podem ser mais relevantes do que a íntima sensação de bem-estar;
2) além disso, somos cronicamente dependentes do olhar dos outros. Consequência: para ter certeza de que sou feliz, preciso constatar que os outros enxergam minha felicidade. Nada grave, mas isso leva a algo mais chato: a prova de minha felicidade é a inveja dos outros.
O resultado dessa necessidade de parecermos felizes é que a felicidade é este paradoxo: uma grande impostura da qual receamos não fazer parte e que, por isso mesmo, não conseguimos denunciar.


Contardo Calligaris

Monday, September 20, 2010

Angústia

Que me toma
Cola
Transforma o meu olhar
Entorta o meu caminhar
Me faz respirar curto
Temer a vida, a falta dela, o mundo,
Dele me apartando
Para logo depois nele me recolocar
Com a mesma força , sem se dissipar ...

Angústia
Que aperta o meu coração
Me desconcentra
Me apequena
Na busca de um porto seguro... angústia...

Cecília

19-09-10

Sunday, September 12, 2010

A vida e a história

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Foi então que um colega, também tresnoitado, olhou pela janela e viu um enorme abacate pendurado
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É O FINAL de um dos romances de Émile Zola, "A Fecundidade". Ao terminar o gigantesco projeto dos Rougon-Macquart ("História Natural e Social de uma Família sob o Segundo Império"), Zola escreveria o que chamou de seus quatro evangelhos: a fecundidade, o trabalho, a justiça e a verdade. O primeiro deles termina com o grito de uma jovem camponesa varando a tarde e o campo: "A vaca pariu um bezerro!"
Felizmente -digo eu, que não sou camponês nem pertenço a nenhuma família sob o segundo ou qualquer outro império. No romance de Zola, o grito da camponesa começa, encerra e sublima a maravilhosa rotina do viver, a terra parindo seus frutos e os habitantes da terra parindo seus filhos. Inclusive as vacas.
A garantia dessa rotina, afinal, é o que nos salva. Lembro uma de nossas crises políticas, das mais "brabas", a que provocou o suicídio de Getulio Vargas em 1954. Eu trabalhava então num jornal aqui do Rio de Janeiro e passara duas noites sem ir para casa, sem fazer barba, sem mudar de roupa. Substituía em certas horas o repórter destacado para cobrir a crise dentro do próprio palácio.
O mundo parecia ter vindo abaixo. Na altura do terceiro dia de vigília, caí numa poltrona das mais anônimas e modestas do Palácio do Catete. Ali tirava alguns cochilos, interrompidos por novidades sempre dramáticas.
Curioso: durante aqueles dias e noites, enquanto ninguém poderia prever o desfecho, surgiam dramas paralelos que, embora não confirmados, explodiam entre os jornalistas como novo e incontrolável incêndio: Juarez Távora enforcou-se no apartamento do Brigadeiro Eduardo Gomes! Lutero Vargas foi assassinado por um oficial da Aeronáutica! Lacerda foi sequestrado por operários fieis a Vargas! O marechal Mascarenhas de Moraes morreu de enfarte! Coisas assim.
Bem, na altura do terceiro dia, as emoções iniciavam o longo caminho do retrocesso e tudo ia quase voltando à normalidade de uma crise. Mais boatos do que fatos e todo mundo torcendo por um ou outro lado. Foi então que um colega, também tresnoitado, olhou pela janela e viu um enorme abacate pendurado de seu galho (hoje, não acredito que existam abacateiros nos jardins do Palácio do Catete, mas naquele tempo havia, tenho certeza).
O colega olhou atentamente o abacate, silencioso fruto caindo de seu galho, verde e necessário, feito em silêncio e em trabalho vegetal de sua espécie. De repente, comentou em voz alta:
- Felizmente, tudo continua!
Eu não entendi logo. Na fadiga daqueles dias, o "tudo" para mim era a crise em si, o Brasil atravessando o vendaval. Tão grave era a crise que nada seria como antes e nada mais continuaria. Um apocalipse em plena rua do Catete, com suas lojas de móveis baratos, seus botequins cheios de mosquitos. Foi preciso que eu olhasse na direção da janela e também visse o abacate ali, verde, inchado em sua carne verde-amarelada.
Aquele abacate havia sido apenas uma flor semanas antes, e Vargas provavelmente a olhou com seus olhos periféricos de inseto, soprando a fumaça de seus imensos havanas. Agora, Vargas dera um tiro no peito e a flor tornara-se fruto, e ali estava oferecendo-se à janela e aos nossos olhos vermelhos de sono e doídos de cansaço e estupor.
Sim, tudo continuava, o mundo daria outras voltas, outras crises maiores ou menores viriam, mas os abacates continuariam sendo abacates e Vargas, bem, o que seria Vargas dali a dez, 20 ou dali a 60 anos? Um nome na enciclopédia, nas praças e placas das cidades brasileiras?
Crianças e jovens passariam nessas ruas e nem se incomodariam em saber quem fora Getulio Vargas. Um homem de 71 anos dera um tiro no peito, soldados cercavam o palácio presidencial e eu passara dois dias sem poder ir para casa. Enquanto isso, os abacateiros davam flor e fruto. A vida continuaria. A natureza é arrogante em sua fecundidade, os homens é que são estéreis em sua finitude.
Volto ao romance de Zola. A vaca pariu um bezerro. Um abacate, qualquer abacate, vale mais do que uma crise política. A vida é mais importante do que a história.

CARLOS HEITOR CONY

Friday, August 27, 2010

Visita à casa dos fantasmas

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Não foi para isso que caminharia tanto na vida. Aliás, eu caminhei tanto para não sair do lugar
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APROVEITANDO a tarde chuvosa, decidi dar uma volta. Geralmente, costumo ir à praia, passear pela orla, mas caía uma garoa miúda e irritante, resolvi me embrenhar em outros bairros, distantes bairros de minha infância, que há muitos anos não visito, em parte por preguiça, em parte (ou no todo) por fastio. Peguei o carro e, sem saber o que fazer, fiz o que não devia.
Quando dei por mim, já estava naquele roteiro que inclui algumas ruas do Maracanã, de Vila Isabel, do Cabuçu e do Lins de Vasconcelos, cabeça, tronco e membros da antiga zona norte. Ali, a igreja onde me casei. Numa biografia bastante acidentada, com alguns casamentos incompletos, foi a única convolação de núpcias a que me submeti. Antigamente, os doutos usavam a expressão "convolar núpcias" para designar o casamento.
As recordações que ficaram não são necessariamente boas nem más, mas indiferentes. Foi um outro que convolou núpcias naquela igreja que tem um anjo São Miguel imitado da estátua do mesmo anjo na praça Saint Michel, em Paris: com sua espada de bronze, afasta um demônio de chifres e rabo em forma de seta.
Depois, o apartamento onde morei alguns anos, confortável apartamento com uma boa cobertura, ali minhas filhas brincaram e eu próprio soltei meus últimos balões de São João.
Depois, a rua da primeira escola, no enorme terreno ergueram um imenso hospital da Marinha e eu fugi daquele gigante que abriga os heróis da Armada de Guerra -segundo as palavras gravadas no pórtico "art noveau" do hospital. Penso no nenhum sentido que delas resulta: armada de guerra. Um pleonasmo? Ou apenas uma bobagem?
De repente, dobro uma esquina e esbarro com a casa, milagrosamente intacta: a fachada de pó de pedra está bastante estragada, da última vez que ali estive, dez ou onze anos atrás, o aspecto era menos decadente. Sim, ali está a casa: ali nasceu o Tutuca, numa tarde de domingo, domingo de março, de um ano cada vez mais distante.
As recordações são poucas. Num início de noite, o pai foi àquele portão e apanhou um balão apagado e silencioso que vinha caindo, caindo, alguns moleques se juntaram do lado de fora para tascá-lo com seus varapaus homicidas, mas respeitaram o domínio do dono da casa, o balão é dele. Depois, ainda na época dos balões, o irmão mais velho de pelerine azul marinho por causa do frio de junho, armando sua barraquinha de fogos.
Uma lanterna vermelha avisava que um menino ali vendia fogos -e eu era vidrado no estranho cheiro de pólvora e papel colado que sua barraquinha desprendia. Prometeram-me que eu também teria uma barraquinha igual quando crescesse -eu cresci inutilmente, nunca mereci uma barraquinha daquelas, com a lanterna vermelha acesa no meio da noite, bolas-, não foi para isso que caminharia tanto na vida. Aliás, caminhei tanto para não sair do lugar.
Agora, a casa está meio decomposta pelos anos, dois enormes vira-latas se aproximam, latindo. Quando dão comigo, param de latir, metem os focinhos pelas grades (as mesmas de antigamente) e me fuçam, como que me recebendo, eu, o Tutuca que nasceu naquela casa. Parece que sabem ou adivinham isso e eu me sinto importante -ao menos para os cachorros.
O atual dono da casa vem saber por que os cachorros estão latindo. Não gosta de ver o estranho parado em seu portão. É homem meio gordo, usa camisa de malha branca sem mangas, está suado pela tarde abafada e chuvosa.
Pergunta o que desejo. Tenho vergonha de confessar o motivo que me levara ali, aliás, não tinha nenhum motivo para estar ali. Indago se o cidadão conhece um tal de Tutuca. Não, o homem não conhece Tutuca algum.
Eu insisto, afirmo que o tal Tutuca ali morou, era um garoto bochechudo e palerma. O homem faz uma cara escandalizada e me despacha, dizendo que tem mais o que fazer -eu o invejo, nada tinha para fazer.
Atravessei a rua e peguei o carro. O homem olhou admirado, pois me supunha um pedestre reles e enxerido. E nem adivinhou que o Tutuca nunca saiu daquela casa, aderente àquelas paredes descascadas e inarredável como um fantasma sem futuro.

Carlos Heitor Cony

Thursday, July 15, 2010

Theresa





“Cheguei para arrasar,
derreter corações,
para romper medos, barreiras,
resistências que não se explicam (razões obscuras)
e com meu olhar direto, cativante, demolidor
deixá-lo(a) completamente rendido(a) aos meus encantos”

É isso o que você diz sem palavras complicadas,
sem necessidade de adjetivos,
só olhos nos olhos de quem a contempla hipnotizado,
derretido, tomado por estranha alegria, apaixonado...


Tetê, sereia,
Seu canto é seu olhar que enreda,
arrasta para inconcebíveis profundezas
...mata

Cecília
15-07-10

Saturday, June 12, 2010

Soneto XVII (do livro Cien Sonetos de Amor)

No te amo como si fueras rosa de sal, topacio
o flecha de claveles que propagan el fuego:
te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y la alma.

Te amo como la planta que no florece y lleva
dentro de sí, escondida, la luz de aquellas flores,
y gracias a tu amor vive oscuro en mi cuerpo
el apretado aroma que ascendió de la tierra.

Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde,
te amo directamente sin problemas ni orgullo:
así te amo proque no sé amar de otra manera,

sino así de este modo en que no soy ni eres,
tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía,
tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño.

Pablo Neruda

Friday, June 11, 2010

O direito de buscar a felicidade

O ARTIGO SEXTO da Constituição Federal declara que "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".
O Movimento Mais Feliz (www.maisfeliz.org) promove uma emenda constitucional pela qual o artigo seria modificado da seguinte forma: "São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde etc." (segue inalterado até o fim).
É claro que, se eu dispuser de casa, emprego, assistência médica, segurança, terei mais tempo e energia para buscar minha felicidade. No entanto o respeito a esses direitos sociais básicos não garante a felicidade de ninguém; como se diz, ter comida e roupa lavada é bom e ajuda, mas não é condição suficiente nem absolutamente necessária para a busca da felicidade.
Em suma, implico um pouco com o adjetivo "essencial" no texto da emenda, mas, fora isso, gosto da iniciativa porque, como a Declaração de Independência dos EUA, ela situa a busca da felicidade como um direito do indivíduo, anterior a todos os direitos sociais.
Por que a busca da felicidade não seria apenas mais um direito social na lista? Simples.
A felicidade, para você, pode ser uma vida casta; para outro, pode ser um casamento monogâmico; para outro ainda, pode ser uma orgia promíscua.
Para você, buscar a felicidade consiste em exercer uma rigorosa disciplina do corpo; para outros, é comilança e ociosidade. Alguns procuram o agito da vida urbana, e outros, o silêncio do deserto. Há os que querem simplicidade e os que preferem o luxo. Buscar a felicidade, para alguns, significa servir a grandes ideais ou a um deus; para outros, permitir-se os prazeres mais efêmeros.
Invento e procuro minha versão da felicidade, com apenas um limite: minha busca não pode impedir os outros de procurar a felicidade que eles bem entendem. Por isso, obviamente, por mais que eu pense que isto me faria muito feliz, não posso dirigir bêbado, assaltar bancos ou escutar música alta depois da meia-noite. Por isso também não posso exigir que, para eu ser feliz, todos busquem a mesma felicidade que eu busco.
Por exemplo, você procura ser feliz num casamento indissolúvel diante de Deus e dos homens. A sociedade deve permitir que você se case, na sua igreja, e nunca se divorcie. Mas, se, para ser feliz, você exigir que todos os casamentos sejam indissolúveis, você não será fundamentalmente diferente de quem, para ser feliz, quer estuprar, assaltar ou dirigir bêbado.
Não ficou claro? Pois bem, imagine que, para ser feliz, você ache necessário que todos queiram ser felizes do jeito que você gosta; inevitavelmente, você desprezará a busca da felicidade de seus concidadãos exatamente como o bandido ou o estuprador a desprezam.
Em matéria de felicidade, os governos podem oferecer as melhores condições possíveis para que cada indivíduo persiga seu projeto -por exemplo, como sugere a emenda constitucional proposta, garantindo a todos os direitos sociais básicos. Mas o melhor governo é o que não prefere nenhuma das diferentes felicidades que seus sujeitos procuram.
Não é coisa simples. Nosso governo oferece uma isenção fiscal às igrejas, as quais, certamente, são cruciais na procura da felicidade de muitos. Mas as escolas de dança de salão ou os clubes sadomasoquistas também são significativos na busca da felicidade de vários cidadãos. Será que um governo deve favorecer a ideia de felicidade compartilhada pela maioria? Ou, então, será que deve apoiar a felicidade que teria uma mais "nobre" inspiração moral?
Antes de responder, considere: os governos totalitários (laicos ou religiosos) sempre "sabem" qual é a felicidade "certa" para seus sujeitos. Juram que eles querem o bem dos cidadãos e garantem a felicidade como um direito social -claro, é a mesma felicidade para todos. É isso que você quer?
Enfim, introduzir na Constituição Federal a busca da felicidade como direito do indivíduo, aquém e acima de todos os direitos sociais, é um gesto de liberdade, quase um ato de resistência.


CONTARDO CALLIGARIS

Um grande escritor

COMPOSIÇÃO ESCOLAR (Da "Folha de São Paulo")


ERA UMA noite solitária do mês de abril dos anos mais antigos do passado. Eu estava na janela olhando a rua, e entre a janela e a rua havia um jardim.
O pai costumava, tão logo a noite caía, regar os nossos canteiros de tinhorões e avencas, os pés de roseira que ficavam do outro lado, costeando o muro que dividia a nossa casa de um palacete -o único palacete da rua e do bairro.
Verdade: o palacete era enorme, tinha uma escadaria de mármore que subia pela fachada principal -mas não havia jardins, nem sequer um tinhorão aveludado, nem sequer um pé de manacá como o nosso, que ali estava cheirando, molhado pelo anoitecer daquele solitário abril dos anos mais antigos do passado.
Eu olhava a noite e sentia o perfume que vinha do jardim umedecido. A rua não tinha cheiros, era apenas um espaço cor de cimento e pedra, naquele tempo quase não havia movimento, o bonde passava pontualmente de 15 em 15 minutos, era um bonde verde como um bicho de seda comprido, à noite ele vinha iluminado, vazio e inútil, levando ninguém para lugar nenhum.
Além do bonde, um ou outro carro deslizava pela rua vazia. Todas as noites, lembro que, pelas nove horas, passava um carro branco, último modelo na época; se a noite era quente, a capota estava arriada e dentro dele um homem vestido de branco, todo de branco, e houve noite em que, ao lado do homem vestido de branco, havia uma mulher também vestida de branco, um chapéu branco e enorme com enormes fitas brancas.
Anos depois, quando assisti pela primeira vez a "La Traviata", no segundo ato, cheirando a jardim e a flor, lá estava a mesma mulher vestida de branco, com seu chapéu e suas fitas brancas.
Não entendi nada, mas guardei para sempre aquele encontro mágico que era tão meu. Na ópera, o pai se emocionava com a despedida da mulher que abandonava o amante, e eu tinha a certeza de que aquela mulher ali estava só para mim e para sempre. E passava pela minha rua num carro branco e nupcial.
Mas isso foi há muito tempo. Há tanto tempo que já não gosto mais daquele segundo ato, nem da ópera em si e, mesmo que gostasse, de nada me adiantaria: a rua foi asfaltada, perdeu a cor de cimento e pedra, ficou escura como uma enorme tira de fita isolante, os bondes foram arquivados e o palacete foi demolido, em seu lugar subiu um espigão sem forma nem cor.
E o jardim de nossa casa não mais existe, nem os tinhorões nem as avencas, o menino que ficava ali, olhando a noite e o jardim molhado, também ele não existe mais.
De tudo, o que restou foi o silêncio do menino olhando a noite e sentindo o perfume do jardim, esperando o carro branco e nupcial, a mulher com seu chapéu de fitas brancas que parecia ter saído do segundo ato de uma ópera. Além da noite e do jardim estava o mundo, a vida que se desdobrou para o menino, uma vida nem boa nem má, apenas vida -e bastante.
E onde está o carro branco que passava lentamente pelo meio da noite, aquele casal vestido de branco que vinha não sei de onde e se perdia naquela noite silenciosa do mundo?
Ficaram na memória do menino, com os cheiros e os tinhorões aveludados, o pé de manacá molhado, o bonde iluminado e vazio, o garoto olhando a solitária noite dos anos mais antigos do passado.
Mais tarde, o menino precisou fazer aquilo que os outros chamavam de "ganhar a vida". Ele não sabia direito o que era aquilo, já tinha uma vida que lhe fora dada de graça, não precisava de outra, de ganhar outra.
Quando as coisas se complicavam para o lado dele, recorria àquela imagem distante, a rua deserta e perfumada pelo manacá, de repente o carro branco e silencioso passando devagar, a mulher com seu enorme chapéu de tiras brancas deslizando na noite do passado.
Os anos mais antigos também passaram, parece que nem tinham acontecido. O que acontecia agora era muito colorido, berrantemente colorido, o mundo é em cores e faz muito barulho, som e fúria que nada significam.
Mas o menino gosta de pensar neles, embora o homem tenha um pouco de vergonha em falar neles.

CARLOS HEITOR CONY


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Thursday, May 06, 2010

Erotikós

Puedo romperme a un simple toque
De tus dientes blancos,
inundando tu boca con el dulce fluido
de que soy hecha, néctar de los dioses.
Y me voy: dejando deseo, dulzura de un beso,
despertando tu hambre, tus ganas y tu sensualidad.
Ah! Deseo que a mi dedicas...
Como lo retribuo! Me muestro solo tuya,
Soy puro azucar, soy más que miel.
Tu cielo alcanzo, en tu lengua descanso,
Y después...deslizo por tu garganta.

Cecília

Thursday, April 22, 2010

Liberdade




Ser apenas um cachorrinho branco, livre e solto
"ciscando" folhas secas sob árvores e arbustos verdes,
transgredindo as leis rigorosas do parque,
lá escondidinha, livre de guia, correndo à vontade,
tendo como pretexto para a brincadeira um osso branco como ela,
que aos poucos vai se tornando cor de terra,
do barro que ela pisa sem dó nem piedade pelo banho da véspera
que a deixou linda, escovada, com lacinhos na cabeça,
cachorrinha de madame...
Banho de boutique , agora sem nenhuma importância
devido ao espírito livre e travesso de sua dona
e de suas lembranças de infância...

Didi, te amo
Cecília

manhã de sol em abril

Sunday, February 21, 2010

Outono

Há mais lembranças do que planos
Há mais andante, largo, do que presto
Há mais silêncio do que vozes, risos
Denso é o olhar, busca de entendimento...
Longas são as tardes, as madrugadas
(tantas vezes insones)
Breve (assim parece) a manhã de nossa vida...
Reflexo de outras são as alegrias,
em seu antigo berço não mais encontrando abrigo.
É triste o anoitecer da vida,
quando só se tem estrelas distantes, fugidias
e o sol é promessa que pode ou não cumprir-se...


Viver o outono é exercer a nostalgia
Respirar quase sempre melancolia...

Cecília
18-02-10