Friday, June 11, 2010

Um grande escritor

COMPOSIÇÃO ESCOLAR (Da "Folha de São Paulo")


ERA UMA noite solitária do mês de abril dos anos mais antigos do passado. Eu estava na janela olhando a rua, e entre a janela e a rua havia um jardim.
O pai costumava, tão logo a noite caía, regar os nossos canteiros de tinhorões e avencas, os pés de roseira que ficavam do outro lado, costeando o muro que dividia a nossa casa de um palacete -o único palacete da rua e do bairro.
Verdade: o palacete era enorme, tinha uma escadaria de mármore que subia pela fachada principal -mas não havia jardins, nem sequer um tinhorão aveludado, nem sequer um pé de manacá como o nosso, que ali estava cheirando, molhado pelo anoitecer daquele solitário abril dos anos mais antigos do passado.
Eu olhava a noite e sentia o perfume que vinha do jardim umedecido. A rua não tinha cheiros, era apenas um espaço cor de cimento e pedra, naquele tempo quase não havia movimento, o bonde passava pontualmente de 15 em 15 minutos, era um bonde verde como um bicho de seda comprido, à noite ele vinha iluminado, vazio e inútil, levando ninguém para lugar nenhum.
Além do bonde, um ou outro carro deslizava pela rua vazia. Todas as noites, lembro que, pelas nove horas, passava um carro branco, último modelo na época; se a noite era quente, a capota estava arriada e dentro dele um homem vestido de branco, todo de branco, e houve noite em que, ao lado do homem vestido de branco, havia uma mulher também vestida de branco, um chapéu branco e enorme com enormes fitas brancas.
Anos depois, quando assisti pela primeira vez a "La Traviata", no segundo ato, cheirando a jardim e a flor, lá estava a mesma mulher vestida de branco, com seu chapéu e suas fitas brancas.
Não entendi nada, mas guardei para sempre aquele encontro mágico que era tão meu. Na ópera, o pai se emocionava com a despedida da mulher que abandonava o amante, e eu tinha a certeza de que aquela mulher ali estava só para mim e para sempre. E passava pela minha rua num carro branco e nupcial.
Mas isso foi há muito tempo. Há tanto tempo que já não gosto mais daquele segundo ato, nem da ópera em si e, mesmo que gostasse, de nada me adiantaria: a rua foi asfaltada, perdeu a cor de cimento e pedra, ficou escura como uma enorme tira de fita isolante, os bondes foram arquivados e o palacete foi demolido, em seu lugar subiu um espigão sem forma nem cor.
E o jardim de nossa casa não mais existe, nem os tinhorões nem as avencas, o menino que ficava ali, olhando a noite e o jardim molhado, também ele não existe mais.
De tudo, o que restou foi o silêncio do menino olhando a noite e sentindo o perfume do jardim, esperando o carro branco e nupcial, a mulher com seu chapéu de fitas brancas que parecia ter saído do segundo ato de uma ópera. Além da noite e do jardim estava o mundo, a vida que se desdobrou para o menino, uma vida nem boa nem má, apenas vida -e bastante.
E onde está o carro branco que passava lentamente pelo meio da noite, aquele casal vestido de branco que vinha não sei de onde e se perdia naquela noite silenciosa do mundo?
Ficaram na memória do menino, com os cheiros e os tinhorões aveludados, o pé de manacá molhado, o bonde iluminado e vazio, o garoto olhando a solitária noite dos anos mais antigos do passado.
Mais tarde, o menino precisou fazer aquilo que os outros chamavam de "ganhar a vida". Ele não sabia direito o que era aquilo, já tinha uma vida que lhe fora dada de graça, não precisava de outra, de ganhar outra.
Quando as coisas se complicavam para o lado dele, recorria àquela imagem distante, a rua deserta e perfumada pelo manacá, de repente o carro branco e silencioso passando devagar, a mulher com seu enorme chapéu de tiras brancas deslizando na noite do passado.
Os anos mais antigos também passaram, parece que nem tinham acontecido. O que acontecia agora era muito colorido, berrantemente colorido, o mundo é em cores e faz muito barulho, som e fúria que nada significam.
Mas o menino gosta de pensar neles, embora o homem tenha um pouco de vergonha em falar neles.

CARLOS HEITOR CONY


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