Wednesday, July 11, 2012

Um rojão para Drummond

Marcelo Coelho



Quando tudo se recolhe à essência mais quieta, Drummond pode recolher-se dentro de si mesmo

Este ano está repleto de homenagens a Carlos Drummond de Andrade, desde encontros na Flip à publicação de seus inéditos da juventude. Vi algumas reedições de seus livros também, feitas pela Cosac Naify, com primoroso trabalho de notas e -como sempre- aquela antipática mania da capa dura que é marca da editora.

Acabei tendo de participar de uma mesa-redonda sobre a prosa de Drummond. Como tinha feito um texto sobre seu livro de crônicas de 1962, "A Bolsa & A Vida", não achei que seria difícil preparar algo meio em cima da hora.

Mas é tempo de férias, e eu tinha de deixar muita coisa pronta antes de viajar. A data da minha participação se aproximava, foi chegando, e nada de eu cuidar do assunto.

Sobrava apenas uma noite; meu sono era grande, a vontade de enrolar, maior ainda, e pensei em dar uma dormidinha antes de começar.

Não contava com o que estava acontecendo lá fora. Era o jogo do Corinthians contra o Boca Juniors. Os fogos e a gritaria de comemoração não deixavam ninguém dormir, e nem por isso me deram vontade de me dedicar à tarefa prometida.

"Tudo bem", pensei. "Daqui a pouco eles se cansam." De fato, depois de uma hora ou duas, os rojões foram rareando. Às vezes, alguém ainda se lembrava da vitória, e berrava como se a conquista da Libertadores tivesse acabado de acontecer.

O silêncio foi vencendo, entretanto, e uma noite igual por fim se impôs, em São Paulo e em Buenos Aires. Dormi sem preparar nem sombra de palestra; acordei de madrugada, e não havia mais coisa nenhuma a ser ouvida.

Conto tudo isso porque, na minha opinião, essa chegada do silêncio e da noite constituem um momento bem drummondiano.

Vale lembrar, para fins de comparação, um famoso poema de Manuel Bandeira, intitulado "Profundamente".

O poeta se lembra de uma festa de São João de quando ele era criança; havia fogos e cantorias. Acorda no meio da noite, tudo já terminou, e quem participava da festa agora estava dormindo, "dormindo profundamente".

Muitos anos depois, no momento em que se recorda dessa cena, o poeta repete a constatação. "Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo/ Minha avó/ Meu avô/ Totônio Rodrigues/ Tomásia/ Rosa/ Onde estão todos eles?"

Bandeira responde: "Estão todos dormindo/ Estão todos deitados/ Dormindo/ Profundamente".

O silêncio depois da festa evoca, no poema de Bandeira, sensações de perda, de saudade. A noite traz algo de irrecuperável; é o fim.

Minha impressão é que, com Carlos Drummond de Andrade, acontece o contrário. O silêncio é bem-vindo, e a noite é o verdadeiro começo.

Quando tudo se recolhe à sua essência mais quieta, Drummond pode finalmente recolher-se também dentro de si mesmo, e é então que tudo nasce.

Talvez a melhor crônica de "A Bolsa & A Vida" seja a que se intitula "Ficar em Casa". É Quarta-feira de Cinzas; aos poucos, o tumulto carnavalesco se reduz a um "grito trêmulo, trazido e levado pelo vento". Drummond está sozinho em casa e se beneficia de uma "inexistência provisória do mundo".

Aprecia "o instante em que a agulha fere o disco sem despertar ainda qualquer som". Descobre, "sem mescalina, as cores que a cor esconde; os timbres entrelaçados no ruído".

Sente a casa "como um todo e como partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, à nossa revelia, contra o nosso desdém".

Não há nada, nesse texto, daquele espírito de "croniquinha" amigável que, muitas vezes, estraga a prosa de Drummond. "Ficar em Casa" lembra algumas passagens de seus melhores poemas.

Penso no "Copo d'Água no Sereno", em que, posto no peitoril da janela, o copo "convoca os eflúvios da noite". O "frio nevoso da serra", "os perfumes brandos/ do mato dormindo" e "o gosto delicado da brisa" se juntam, "e pousam na água".

Em "Indicações", Drummond menciona "certo olhar, mais sério, não ardente,/ que pousas nas coisas, e elas compreendem".

De "mala pronta" e "corpo desprendido" ("Conclusão"), o poeta, que já dissera a si mesmo "fique quieto no seu canto", constata que resta apenas "a alegria de estar só, e mudo".

É desse silêncio que nasce a poesia de Drummond; merece ser comemorada, com os rojões que ainda tenhamos à disposição.




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