Saturday, July 12, 2008

Doutor Rodrigo

Rodrigo Leal Rodrigues
14/04/1926
24/12/2004


Tenho, para mim, que tudo começou naquele sábado de manhã, 21 de agosto de 1999. Era o dia em que eu iria almoçar em Ibiúna, que fica a uns 50 quilômetros de São Paulo, no sítio de um querido amigo, que fazia 81 anos. Acordei nessa manhã com uma tremenda falta de ar. Desmarquei o almoço e telefonei para o Manuel Lopes dos Santos que, além de ser um notável médico, é um dos meus grandes amigos. Como um irmão. Aguardou-me no Pronto Socorro do Hospital São Paulo. Ele fora, naqueles tempos, o primeiro reitor da Universidade Federal de São Paulo, a que pertence o Hospital. Após os primeiros exames, achou melhor que eu me internasse. Pedi ao Manuel que me levasse para o Hospital da Beneficência Portuguesa, do qual sou sócio.
O espetáculo de um Pronto Socorro de um grande Hospital não é coisa boa para ser lembrada. Os olhos, os ouvidos, todos os sentidos, irão guardar, para o resto da vida, essa lembrança de horror. Depois de muita dificuldade, e com a ajuda de um diretor amigo, consegui que me tirassem do Pronto Socorro. Entretanto, não ainda para o quarto a que tinha direito. Levaram-me para a UTI do professor Sérgio de Oliveira, um dos maiores nomes no mundo em cirurgia de coração. Sorte minha, pois foi exatamente naquele lugar que um violento e fulminante enfarte havia marcado encontro comigo. Parecia ter ficado morto por quase cinco minutos, quando ouvi uma voz distante:
- “Ele está voltando!”
-“ Segura ele!”, dizia outra voz.
Iria ser posto, mais tarde, a par da realidade da minha situação: soube que o enfarte havia necrosado 57% do meu coração e que eu teria que aguardar na UTI, até ter condições de ser operado. Foram praticamente dois meses de espera, quando o professor Sérgio de Oliveira “embrulhou” o que restava do meu coração com várias pontes de safena.
Conta-se que a convalescença duma operação de coração é muito difícil. Há uma imensa depressão e até crises de choro. Meu filho leu em algum lugar que, na Alemanha, os médicos recomendavam a companhia de um cão, que transmitisse ao paciente a sua energia vital. Foi por isso que o “Senhor” Joe Black entrou na minha vida. Um cão labrador, com dois meses de idade, e que, desde então, tem sido o companheiro de todos os instantes. Chega a dormir na minha cama, deitado com a cabeçorra em cima de minhas pernas. No escritório, fica deitado ao meu lado, olhando para mim feito gente. Incorporou-se à família. Talvez deva a ele o fato de nunca ter entrado em depressão, nem haver chorado.
Uns meses antes do ataque do coração, acordei numa manhã com um imenso volume na área genital. Corri para o Hospital, onde disse-me o médico José Carlos Campos Velho:
- “Coisinha à toa, sem importância. Um pelo encravado, coisa e tal.”
Receitou-me um antibiótico e eu voltei para casa com aquele imenso incômodo no meio das pernas. Já passava da meia-noite, quando tocou o telefone:
- “É o Dr. Campos Velho! Vá já para o Hospital, porque o que você tem é a chamada Síndrome de Fournier.”.
Como jamais ouvira falar de tal doença, só fui ao Hospital no dia seguinte. Estava lá um outro médico, infectologista, o Dr. Barata. Sisudo e solene demais para meu gosto.
- “Se é caso de antibiótico, posso tomar em casa”, disse-lhe.
Respondeu-me o Dr. Barata, com aquela cara triste que Deus lhe deu:
- “Já terá muita sorte se não sair do quarto para o velório da Beneficência”.
Foi quando me explicaram o que era a doença de Fournier: uma infecção altamente letal e perigosa que, se não for atacada a tempo, significa septicemia, gangrena e morte. Mais que depressa, corri para o quarto, antibiótico na veia, tirando sangue para análise de 02 em 02 horas. À espera duma palavra que significasse esperança e vida, ou a morte.
Depois de umas 12 horas, entrou o Campos Velho no quarto, olhou-me a barriga (quando a infecção se propaga, ela fica azul escura) e falou:
“- Começou a baixar”.
Foram longas horas de ansiedade que, somadas ao enfarte, aos meses de UTI e à operação que me deixou com apenas 43% do coração, talvez tenham sido a origem do que aconteceria depois.
Em 1988, de repente, reparei que demorava muito tempo para urinar. Não era natural tanta lerdeza. Procurei o Prof. Sami Arap que, após vários exames, descobriu que eu estava com pólipos na bexiga e que precisava ser operado.
Lembro que o movimento literário Távola Redonda (do qual eu fizera parte) estava celebrando 40 anos e eu havia decidido, com a ajuda do José Blanco, administrador da Fundação Calouste Gulbenkina, celebrar aquela data em São Paulo. Vieram de Portugal, entre outros, a Fernanda Botelho, o David Mourão-Ferreira, o António Manuel Couto Viana, mais o professor Jayme Ferreira Bueno, da Universidade de Curitiba, cuja tese de doutoramento havia sido sobre o Movimento da Távola Redonda. Foi um acontecimento e tanto nos meios culturais de São Paulo. Além do “Encontro” propriamente dito, o David e o António Manuel ainda deram aulas em várias Faculdades e divulgaram a poesia do Movimento.
Quanto a mim, mal tive tempo de inaugurar o “Encontro” e corri para o Hospital Sírio Libanês, onde o professor Sami Arap já estava pronto para remover os tais “pólipos”. A partir dalí comecei a fazer, a cada seis meses, uma ultra-sonografia. Ano atrás de ano.
Há palavras que são piores que os piores palavrões. Que o povo evita dizer. Que em casa não se escutam. Querem um exemplo?
- “De que morreu Fulano de Tal?”
Silêncio. Só depois é que vem a resposta:
- “De uma doença que não perdoa”.
Ou:
-“De uma doença prolongada.”
Em Portugal, a palavra é CÂNCRO. No Brasil é CÂNCER. São exemplos de palavras que soam pior que o pior palavrão.
Conheço casos que dizem bem do horror da doença, desde aquele médico de Casa Branca que, informado da doença, pura e simplesmente meteu um revólver na boca e puxou o gatilho. Outro a quem o médico mandou fazer exames de sangue, entre eles um para pesquisar indícios de câncer. Coisa de rotina médica. Cismado, foi para casa, alarmou todo mundo e acabou por morrer de câncer, sem nunca ter tido câncer.
Ao longo de minha vida, tenho sido presenteado com grandes dádivas. Por todas elas sou grato a Deus. Os meus amigos são, sem dúvida, uma das maiores dessas dádivas. Têm sido a mão permanente no meu ombro, a garantir-me que não estou só. Têm sido a força, o amparo, o estímulo, o carinho, o amor. Tudo o que um homem precisa para seguir vivendo.
Numa dessas ultra-sonografias, apareceram, novamente, problemas com a bexiga. Mais uma vez, voltei para o carinho e a amizade do Prof. Sami Arap, voltei a operar-me no Hospital Sírio Libanês. À operação, seguiu-se uma coisa chamada imunização, que consiste em jogar vacinas de BCG diretamente na bexiga, durante semanas. Era a esperança de que tudo ficaria por ali. Só que, em novo exame, apareceu um câncer no abdômen. Foi a Prof. Angelita Gama quem, no Hospital da Beneficência, se encarregaria de operar-me. Voltando ao Sami Arap (a essa altura já nos poderíamos até tratar por tu, tamanha era a intimidade) descobriram-se mais três tumores na bexiga.
Começava a estar farto. Eu, a família, os amigos... o Jacob Palma já viera quatro vezes de Portugal para me acompanhar.
Creio que foi a Prof. Angelita Gama que sugeriu que se fizesse uma ressonância magnética, para descanso de todos nós. Qual o quê! Apareceram três tumores no fígado e, dessa vez, foi o Prof. Joaquim Gama Rodrigues quem se encarregou de operar-me.
Não conto os pormenores: anemia, falência renal, perda de sangue, convalescenças difíceis. Tudo somado, daria um livro grande. Entretanto, eu não estou escrevendo este relatório para chamar a atenção para os meus sofrimentos, ou para fazer de mim o mártir que não sou. Nem sequer tenho vocação para tal.
A minha terra, o Ribatejo, província do centro de Portugal, é o único lugar no mundo onde se pratica um desporto conhecido como “pegar touros à unha”. Isso deu ao ribatejanos a fama de homens corajosos, valentes e respeitados.
Hoje, eu acho que, além da valentia, praticar tal desporto exige uma imensa dose de loucura.
Há muitos anos, estava eu na minha juventude e na inconseqüência que era a vida naquele tempo. Morava sozinho em Lisboa, onde estava estudando. Por lá havia um grupo que deslumbrava a nós todos: o Grupo de Forcados Amadores de Santarém e que era chefiado pelo Fernando Mascarenhas, o seu Cabo e o maior pegador de touros de Portugal. Ele adorava a corte e a admiração dos jovens à sua volta. Um dia perguntei-lhe:
- “Qual a melhor maneira de se pegar um touro”?
- “Do jeito que ele vier”, respondeu e virou-me as costas.
Passaram-se muitos anos. Mais de cinquenta. O Fernando Mascarenhas, que era o Marquês da Fronteira, iria morrer mais tarde, estupidamente, apostando corrida de automóveis em Madrid.
Um dia, mais de 50 anos depois, estava eu em Évora, assistindo ao casamento da Tijuca com Carlos Grave que, por curiosa coincidência, era o Cabo do mesmo Grupo de Forcados Amadores de Santarém. Fiz-lhe a mesma pergunta:
- “Ó Carlos, qual é a melhor maneira de se pegar um touro”?
- “Ó tio, é do jeito que ele vier”!
A mesma resposta que ouvira, tantos anos lá para trás.
Se eu fosse médico e um paciente um dia me perguntasse qual a melhor forma para se enfrentar um câncer, eu simplesmente também iria responder:
- “Do jeito que ele vier”!
Câncer! Câncer! Câncer!
Há que não se ter medo da palavra, nem pena de si mesmo. Há que o descobrir o mais cedo possível e não desanimar. Hoje, a ciência médica tem muitos novos meios para enfrentar o câncer, o que não havia antigamente. Se somar a esse fato a certeza de que o vai vencer, porque a fé que tem dentro de si é maior e mais forte que qualquer doença e a confiança na cura lhe dá certeza e força para continuar lutando, isso é meio caminho andado.
Não permita tristeza à sua volta. Dó, então, nem se fala. Se alguém lhe disser que tem muita pena de si, mande-o ter pena da senhora avó, que Deus lá tem.
Nada pior que o olhar, como eu vi num consultório médico, da filha chorando porque a mãe, sentada a seu lado, estava com câncer. Trate-o, estirpe-o, cure-se. O melhor modo de ajudar alguém doente é com amor e alegria. Guardem-se as lágrimas para quando se estiver sozinho, trancado no quarto.
Há alguns anos o meu amigo Luiz Pinto Coelho, pintor famoso e talvez o melhor retratista contemporâneo, telefonou-me de Madrid:
- “Sabes que há dois dias estou urinando sangue”?
Pedi que fosse imediatamente a um bom urologista. Sugeri-lhe que viesse a São Paulo, pois que, fosse o que fosse, encarado no início, iria resolver-se. Telefonou-me dias depois:
- “És um terrorista. Fui aqui a um médico que diagnosticou uma infecção urinária, receitou-me um antibiótico e o sangue sumiu. Estou bem”.
Não adiantaram os conselhos. Ele estava já bom e pronto, dizia.
Um ano se passou. Todas as semanas, normalmente, a gente se falava.
Um dia, veio com a novidade. O sangue na urina voltara. Ordenei-lhe:
- “Toma já um avião e vem para São Paulo, ou vai para os Estados Unidos. Imediatamente”.
Optou pela Clínica Mayo. Foi só lá chegar e o médico começou:
- “Que pena que não tenha vindo há um ano atrás...”
Tudo porque o Luiz não encarara o câncer “do jeito que ele viera”, dando-lhe tempo para correr e espalhar-se.
Ainda fui a Madrid umas quatro vezes para despedir-me dele. Portou-se sempre com imensa dignidade, coragem e lucidez. Pintou até o fim. Morreu há dias.
Hoje, o câncer é simplesmente uma doença como as outras. Não adianta fingir que ele não existe. Há que encará-lo de frente, como na minha terra se encara um touro. E com muita fé, muita confiança e amor dentro de si. O amor é o maior ingrediente capaz de transformar um ser humano. Capaz de fazer de um covarde, um forte. De um canalha, um nobre cheio de dignidade, e de um herege, um santo.
Olhe à sua volta e curta a natureza. Veja as árvores e as folhas caídas no outono e as flores nas árvores cheias da primavera, os ipês e os manacás. E, aconteça o que acontecer, seja grato até o fim. Grato por ter vivido. Ter olhado o que é belo. Acariciado a quem amou. Cheirado as flores e os perfumes espalhados pela vida.
Reparou que mundo maravilhoso é esta coisa simples, o existir?
Só precisa ter fé. E coragem. Até o fim.
E, claro, encarando tudo do jeito que vier.



Rodrigo Leal Rodrigues

1 comment:

Heloísa Sérvulo da Cunha said...

Oi, Cecília,
Que texto fantástico.
Aonde vc o encontrou?
Beijos
Heloísa