Tuesday, August 22, 2006

E o cronista endoidou...

Vou falar hoje de um assunto que talvez não seja assunto de crônica, mas, como já disse que ninguém sabe o que é crônica, vou falar assim mesmo. O assunto é o poema, uma tese sobre o poema, coisa que possivelmente não interessa a ninguém e, quem sabe, por isso mesmo eu deva falar dele.Costumo dizer que o poema não vale nada. Não vale nada no mercado. Pouca gente compraria um poema e, se comprasse, seria barato, ou seja, ao preço do mercado. Não obstante, nem tudo é o mercado. Há mais espaços na vida do que sonha a nossa vã filosofia.Por exemplo, quando estava eu no exílio, conheci um sujeito, economista, casado com uma linda morena brasileira. Ele e ela freqüentavam regularmente aquelas reuniões um tanto fossentas de exilados. Reuniões que não eram tão alegres quanto os papos no Jangadeiros ou no Vermelhinho, mas era o que tínhamos e, em certas situações, é melhor alguma coisa do que nada. Há divergências, é claro.Pois bem, nessas reuniões o marido da brasileira bonita, que era talvez chileno ou espanhol, costumava sentar-se ao meu lado e puxar conversa sobre economia. Citava números, estatísticas, percentagens, leis do mercado e eu, sem muita alternativa, escutava. Até chegar o momento azado em que pedia licença a pretexto de ir ao banheiro ou apanhar uma bebida e não voltava mais. E eis que, inesperadamente, me contam que a tal morena brasileira deixara o economista por um argentino. Pensei logo comigo: na próxima reunião, se ele aparecer por lá, vai ser pior ainda, aí é que grudará comigo o tempo todo.E chegou esse dia. Fui para a reunião disposto a escapar do sujeito a qualquer preço e consegui por algum tempo. Quando já estava no terceiro copo de cerveja, distraí-me e ele se sentou a meu lado. E sabem o que aconteceu? Não falou um só palavra de economia -só falou de poesia, assunto que dominava muito bem. Falou-me de seus poetas preferidos, que eram alguns de língua espanhola, outros franceses, ingleses ou italianos. Sabia de cor poemas de Eliot e de Fernando Pessoa.- Estou relendo meus poemas queridos, confessou.E então entendi: é que a morena tinha ido embora e, quando a morena vai embora, meu caro, só a poesia nos socorre. É então que ela se torna necessária.Se tudo corre bem, a economia basta, mas, se a morena se vai, não há economia, nem trigonometria, nem geografia, ecologia, paleontologia que dê jeito. Só mesmo a poesia.Com isso fica demonstrado por que a poesia vale pouco no mercado: trata-se de um bem de consumo conspícuo. Mas, como os poetas não escrevem para ganhar dinheiro, essa pouca valia não os desencoraja.Esse é um aspecto deste assunto que não interessa a ninguém; o outro aspecto é que, além de valer tão pouco, o poema não é inevitável. Explicando melhor: qualquer poema que tenha sido escrito -ainda que seja "A Divina Comédia"- poderia não ter sido escrito e, além disso, poderia ter sido escrito de outro modo, poderia ser outro!Vou dar um exemplo doméstico. Certa vez, escrevi um poema inspirado na lembrança de minha casa de infância em São Luís do Maranhão; uma casa antiga, soalho de tábuas corridas e corroídas, com algumas fendas por onde costumavam sumir minhas poucas moedas. Mas uma manhã caiu-me da mão uma moeda de um cruzado (aquele velho cruzado, aliás velhíssimo cruzado) e desapareceu por uma das fendas do soalho. Decidi recuperá-la: aproveitando o fato de que uma das tábuas do cômodo estava solta, meti-me por baixo do soalho e fui me arrastando no pó negro ali depositado, que talvez por quase um século não visse a luz do sol e exalava insuportável fedor de mofo. Recuperei a moeda, mas nunca mais esqueci aquela aventura. O poema não contava essa história, mas falava da "noite menor sob os pés da família" e da "língua de fogo azul debaixo da casa".Isso foi em 1970. Meses depois, tive que ir para a clandestinidade e, um ano depois, para o exílio. Fui parar em Moscou. E lá, de repente, ao lembrar-me do poema, verifiquei que o perdera. Inconformado, resolvi escrevê-lo de novo e o consegui, tanto que ele foi publicado no meu livro "Dentro da Noite Veloz", editado em 1975, quando eu já estava em Buenos Aires.Muito bem. Volto para o Brasil em 1977 e, remexendo velhas pastas que aqui haviam ficado, encontro o poema dado por perdido. Para minha surpresa, era bastante diferente do segundo, escrito em Moscou. O que significa isso? Significa, sem dúvida, que os poemas não têm uma forma inevitável e, como forma e conteúdo são indissociáveis, tampouco seu conteúdo é inevitável. Se, naquele dia em Moscou, eu tivesse encontrado o primeiro poema, não teria escrito o segundo, e aquele ficaria como o único poema possível sobre o tema, conclusão equivocada, conforme acabo de demonstrar, pois, como sugeriu Mallarmé, o poema é um lance de dados que jamais eliminará o acaso.E digo mais: o poema não é a expressão do que se viveu ou experimentou. Se eu sinto um cheiro de jasmim na noite e escrevo um poema sobre esse fato, o que faço não é expressar tal experiência, mas, na verdade, usá-la como impulso para inventar uma coisa que não existia antes: o poema, o qual se somará a todas as galáxias, planetas, cometas, oceanos e tudo o mais que exista no universo. E o universo será, a partir de então, tudo o que já era mais aquele pequeno agregado de palavras, nascido de um perfume.

Ferreira Gullar

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